Uma catedral feita de palavras

Tome uma pessoa basicamente fofoqueira, mas excelente observadora. Coloque-a no mundo da alta sociedade (e baixa também) e misture-a com gente de todo o tipo, intelectuais, prostitutas de luxo, grandes damas, homossexuais, nobres e plebeus. Deixe-a solta por algumas décadas numa espiral de festas em grandes mansões e temporadas em hotéis cinco estrelas. Dependendo de quem seja o fofoqueiro, pode ser que escreva “Em Busca do Tempo Perdido”. Além de fofoqueiro/observador, precisa ser muito persistente porém; na velha edição brasileira da Editora Globo são exatamente 2475 páginas em folhas com cerca de 45 linhas. Ou mais acuradamente 1.200.000 palavras em números redondos. E quem pretender ler tudo isso deverá ter quase tanta persistência quanto o autor!

Uma vez, numa Laundrette (não tem lugar mais triste que aquele, especialmente num domingo fim de tarde) reparei que o único cliente além de mim estava lendo Proust – falei com ele, um homem simpático, passada meia-idade, que disse que estava lendo o romance pela segunda vez, depois de quase trinta anos: – “é uma outra leitura, uma visão muito mais ampla, iluminada que é pela experiência de vida. Sou outra pessoa quem está lendo hoje”. Ele falou mesmo assim. Sorrindo, disse também que enfrentar a leitura implica em assumir e aceitar que não se poderá ler mais nada por pelo menos um ano!

Não perguntei se ele pulou as longuíssimas descrições de jardins, flores e caminhos – como eu – ou algumas das dezenas de páginas descrevendo os ciúmes de Swann e do narrador. Mas há outras descrições, tão longas quanto, que eu chegava a reler de tão profundo era o conhecimento da natureza humana que delas se extraia.

Apesar de eu conhecer pouquíssimos leitores de Proust, devem ser muitos. A Editora Nova Fronteira publicou o tijolão em 2017, e vejo na Amazon que está na 3a edição. É muito, é pouco em quase sete anos? Não sei, a resposta deveria levar em conta a variável da dificuldade da obra. O incrível é que tem um único tradutor: Fernando Pym, que aqui reverencio – realmente! A mesma editora nos dá o Jean Santeuil (pasmem – com o mesmo tradutor!), livro que é “a infância da Busca” escrito aos 26 anos e só descoberto em 1952 a partir de folhas esparsas. Mas a obra prima da editoria brasileira, que faz jus à obra prima que é romance, é a da Editora Globo (1948). Na tradução trabalhou gente como Mario Quintana, Lúcia Pereira, Manuel Bandeira + Lourdes S. De Alencar e Carlos Drummond de Andrade. Não sei quantas edições foram produzidas; pelo menos três.

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Os sete volumes da A Busca do tempo Perdido, da Editora Globo

Quem olhar essas e outras edições, distantes no tempo uma da outra vai detectar diferenças e imperfeições (os últimos três volumes foram publicados depois da morte de Proust, a partir de manuscritos pesadamente anotados nas margens e corrigidos), mas não me preocuparia muito com isso – são coisas para os experts.

Quanto a nós, simples leitores, entrar nesta catedral construída de palavras assusta e atrai ao mesmo tempo; na porta somos presa de um quê de timidez misturada com curiosidade – fala-se tanto neste cara! TeraBites de doutas e complicadas palavras foram e são gastos em seu estudo e análise, especialmente dos anos ´50 para cá. Dentre esses TB tem os escritos por Alain de Botton, que tomou um caminho completamente diferente para nos incentivar a ler Proust, intitulando seu livro: “Como Proust pode mudar sua vida”. Para meu gosto, A. de Botton escreve livros demais sobre temas variados demais, mas ele não é um vulgar vulgarizador (!), é inteligente e divertido (gostei de “Desejo de Status”; parece escrito sob medida para nossas elites) e o título de seu trabalho sobre Proust não foi escolhido ao acaso, mas remete a uma frase da última página do livro: “… se queremos prestar homenagem a Proust devemos começar a olhar o nosso mundo com os olhos dele, e não olhar o seu mundo com nossos olhos”.

Na catedral de palavras construída por Proust passa-se a viver em uma nova dimensão, tanto que, pelo menos para mim, os personagens tomaram forma real. Assim, vejo Charlus como um homem alto, maciço, vaidosíssimo e mal humorado, uma espécie de Oscar Wilde com quem aliás tem diversos pontos em comum! Swann um homem elegante, culto e silencioso, de raro sorriso triste. A princesa de Guermantes penso parecer com a atriz Grace Kelly e Albertine uma moça um pouco vulgar, de olhar oblíquo, baixinha e sempre amuada. Fiquei muito decepcionado quando no belíssimo filme ‘Um amor de Swann” (1985) vi que Charlus era interpretado por Alain Delon, o oposto da minha imagem!

Hoje não seria politicamente correto comportar-se como Charlus, que em uma recepção, ao receber humildes desculpas por ter sido por engano chamado apenas de ‘Mister’, ele que era príncipe disso, duque e marquês daquilo, diz: ‘ora, isso não tem a menor importância aqui‘, calcando no ‘aqui’ para mostrar quão inferior e vulgar ele considerava aquela companhia.  

O Grande Hotel de Balbec (que na realidade se chama Cabourg – costa da Normandia), lugar preferido de Proust para suas férias.

E da leitura do milhão e pouco de palavras vale a pena lembrar, por exemplo, as seguintes vinte e seis, que fecham a segunda seção do primeiro volume: ‘E dizer que eu estraguei anos de minha vida, que desejei a morte, por uma mulher que não me agradava e que nem fazia meu tipo’. São de Swann referidas a Odette.

Realmente, deve-se prestar atenção na vida para evitar erros, grandes ou pequenos.

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