O cão

I

Era um hotelzinho bem antigo, mas confortável, na praça principal da cidade. Foi há tanto tempo que não lembro do porquê estava lá. Mas guardei que era o ano 1992.

À noite, a procura de um restaurante me levou até um pequeno lago, no pé de uma descidona longa, longa, que infelizmente era preciso depois subir. Quase no último quarteirão da subida, na soleira de uma porta, dessas que dão direto para a rua, havia uma manchinha escura. Moveu-se e veio na minha direção, devagar. Era um cachorro: pelo curto negro com um brilho metálico e toque aveludado. Colocou sua pata no meu sapato e me olhou firme, como se me conhecesse desde sempre. Afastei-me uns dois passos, e ele me seguiu. O típico comportamento do cão abandonado – pensei – e curvando-me procurei a coleira, alguma plaquinha de identificação, mas nada. No gesto ele lambeu-me a mão, e como eu retomasse meus passos, seguiu-me até a rua principal, já em vista do hotel

– Vá embora, vai embora!

Ele parou, eu comecei a andar mais depressa – antes de virar a esquina olhei para trás: ele já era só um pontinho escuro.

Dia seguinte, mesmo encontro, mais ou menos na mesma hora. Dessa vez demorei-me mais, nos conhecemos melhor. Novamente me acompanhou até a rua principal e mais um pouco, até perto do hotel, de forma que ao entrar ainda podia vê-lo – uma manchinha escura na calçada, longe.

Terceiro dia, dia de ir embora; o que tinha que fazer terminava ao meio dia. Pagar o hotel e pegar o carro. Mas tinha me decidido: a pé fui até aquela porta, mas ele não estava. Bati, mas nenhuma resposta, a casa parecia vazia.

Quando ponho uma coisa na cabeça ninguém tira: flanei pela pequena cidade esperando a noite e voltei até a tal porta. Ele estava lá; resistiu um pouco ao ser levantado do chão, mas logo se acomodou nos meus braços como se me conhecesse há tempo. Coloquei-o no banco da frente do carro, e lá fomos nós na direção de minha cidade, minha casa.  

Dia seguinte – veterinário:

– Esse garoto está em boa saúde, só precisa de antirrábica

– E que idade tem?

– Ah, talvez uns cinco anos – multiplicando por sete, uns trinta e cinco.

Então estávamos na mesma; eu tinha quarenta.

II

          E assim passaram muitos dias, meses, anos. Minha então mulher não gostava muito do cão. Ao entrar em casa no primeiro dia ele latiu para ela – deve ter sentido um cheiro no ar, uma aura de desaprovação. Isso continuou por algum tempo, dois anos talvez, até que finalmente nos livramos dela. Não foi fácil; ela até simulou gostar do cão, que agora chamava-se Argo, mas não enganou nem a ele nem a mim. Se fez de gentil levando-o a passear, mas queixou-se que Argo parava em cada poste, em cada touceira da calçada. Assim como poderia ela se exercitar?

Essa foi a gota d´água; custou-me o que eu tinha no banco, mas para tranquilidade minha e felicidade do Argo estávamos sós.

A essa altura eu já tinha cinquenta anos, e ele espantosos quinze ou dezessete. Comecei a pensar que o velho veterinário tivesse se enganado. O cão era o mesmo, só não pulava tão alto quando eu pegava a guia para sairmos. Talvez dormisse mais um pouco nas longas tardes de inverno que começavam a incomodar meu reumatismo.

Meus filhos, eram dois. Nascidos no início dos anos ´90. Foi nessa altura de nossas vidas, digo, do Argo e eu, que saíram de casa. Universidade em outra cidade um, e inquietação o outro, o mais inteligente. Foi morar numa daquelas comunas autossuficientes, onde vige o amor livre e a propriedade comum. Da universidade, o outro se foi para doutoramento no exterior e lá ficou – escreveu que tinha arranjado um emprego, mas nunca vim a saber a verdadeira história. De vez em quando eu recebia a visita do outro. Cabelos compridos, parecia estar sempre com a mesma roupa. Mais alguns anos, e passou a mandar e-mails, apenas; dizia que não podia arcar com o preço da passagem. Me ofereci para pagar, mas não tive resposta.

Uma mulher entrou em casa, ficou algum tempo, era sabichona, atraída pela aura de intelectual que supunha que eu ainda possuísse e exercesse. Hesitei um instante antes de a deixar se instalar, intrigado pelas suas meias amarelas. Mas eu já entrara na estação da indiferença para tudo ou quase. Passamos dois anos assim, e quando ela se queixou de alergia aos pelos que o velho Argo deixava pela casa, resolvi que a hora tinha chegado. Deixei que levasse alguns de meus livros e o serviço de chá chinês de que tanto gostava e que eu tanto detestava.

Agora ficamos só Argo e eu, minha contínua companhia. Certas noites, no silêncio da casa, eu o olhava e pensava: o que será de mim quando ele se for. Ou o contrário, que é menos provável, visto a maldosa desigualdade do tempo de vida que Deus concede a homens e cães.

Mas continuávamos juntos, e eu já estava com sessenta anos. Mas quantos ele teria então? Mais de vinte! Possível!? Nem o Argo de Ulisses vivera tanto!

Mas continuávamos os dois, ele mais sonolento, com o focinho ficando branco, mas sempre atento aos meus movimentos pela casa, seguindo-me como uma sombra protetora.

III

Agora que meu amigo se foi cabe a mim contar o resto da história. Eu era um dos poucos frequentadores daquela casa; pensando bem quase certamente o único. A primeira vez que os visitei Argo latiu de leve, cheirou os meus sapatos e só depois de cuidadosa colheita de informações se deitou aos pés do dono, olhando-me com ar tranquilo e confiante. Nas visitas subsequentes me acolhia alegremente, balançando a cauda com tal energia que esta balançava a si próprio.

– Há quanto tempo tens este cachorro?

– Uns dez anos

– Estranho, ele parece bem jovem ainda

Meu amigo não respondeu de pronto. Olhou para o cão, que lhe devolveu o olhar, como se conversassem; eles sabiam que era o dobro disso.

– É – bem jovem

Nos dez anos seguintes continuávamos a nos frequentar, talvez uma vez por mês, eu cada vez mais espantado com o Argo, sempre presente. Pensei até que fosse outro cachorro, que meu amigo estivesse me enganando e fiquei até meio ofendido. Mas o tempo passou até que de repente para o meu amigo parou. Ele tinha recém-completado setenta anos. Ao correr para o hospital quase tropecei no Argo, deitado em frente à entrada, com os olhos fixos no elevador, lá no fim do hall do hospital, o elevador por onde tinham subido seu dono.

Quando eu saí ele estava na mesma posição, mas sem vida. Em minutos seu belo pelo preto lustroso tinha ficado inteiramente branco. 

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