Os dedo-duros

O dedo-durismo é uma prática muito utilizada, principalmente por canalhas. Difícil saber se ele é inato, mas se manifesta no homem (quando digo “o homem” estou indicando um membro do gênero humano) desde os mais tenros anos. Basta ver a quantidade de “foi ele mãe!” que se ouve nos lares abençoados por crianças, nas escolas, creches, etc. Pensando bem, nesses casos não é dedo-durismo propriamente dito; é mais uma defesa ou um ataque prévio, que é um tipo de defesa. No caso de crianças a motivação primeira certamente é o instinto de preservação.

O verdadeiro dedo-durismo é essencialmente adulto. Sim, porque ele implica em um ganho, uma recompensa, e os exemplos da História se perdem na noite. Podemos começar com Judas, que recebeu os 40 dinheiros para apontar aos romanos quem é o Cristo. Na realidade, este importante evento é bastante estranho: Jesus não era suficientemente conhecido para que fosse necessário identifica-lo? Ou mesmo: como iria se desenrolar a coisa toda – crucificação – morte, ressurreição – gente esperando Cristo até hoje, etc., se Judas não o tivesse indicado? De qualquer modo, o episódio Judas-Cristo está hoje sendo revisto por muitos estudiosos e parece que múltiplas versões estão sendo discutidas. Mas isso é só um exemplo de dedo-durismo, e não interessa aprofundá-lo aqui.

Continuando no tempo temos Dante, que obviamente coloca os dedo-duros, e os traidores no inferno. Caprichou bastante colocando-os no nível mais baixo – o nono círculo – “loco onde parlare é duro” ou ‘local difícil de descrever’. Esse círculo é dividido em quatro níveis – traidores: (1) de parentes; (2) da pátria e da causa; (3) dos hóspedes; (4) dos patrões ou benfeitores. Vai sem dizer que Judas é o protótipo do dedo-duro e está neste ultimíssimo poço, “a base do inferno”. Mesmo que se por absurdo não pudéssemos dizer nada de Dante, devemos dizer que ele é muitíssimo INVENTIVO. Assim vejamos; essas almas do nono círculo, quando em vida elas “dissolviam, ou derretiam” deliberadamente os laços de confiança que os ligavam aos parentes, amigos, partidos, patrões, reis, e os de gratidão devida aos que lhe fizeram bem. `Era uma “fria maldade”, diametralmente oposta à ardente caridade e ao quente afeto. E por esta frieza que Dante os coloca imersos no congelado rio Cocito, e por toda a eternidade. Enfim, os CONGELA após a morte, em contraposição ao derretimento/dissolução da confiança e gratidão que recebiam em vida e de acordo com sua fria maldade de seus atos de traição.

Em tempos mais próximos os exemplos se multiplicam – traições, algumas não necessariamente apontadas por um dedo-duro, outras sim. Da escola lembramos do malvado Joaquim Silvério dos Reis, e mais recentemente, do cabo Anselmo. Este sim o protótipo do dedo-duro. Em Política as traições estão na ordem do dia e pertencem à segunda classe – traidores da classe. Outra categoria são as traições de parentes, adultério sendo talvez o mais praticado, com ou sem dedo-duro. Mas essa modalidade de traição está imersa em sentimentos pegajosos e complexos por isso prefiro não tratá-la aqui.

De qualquer modo, nunca tive contato direto e pessoal com um belo exemplo de dedo-durismo moderno, com uma exceção que vale a pena contar. Antes vou fazer uma digressão ligada a algo muito comum antigamente: a Indústria. Sim, tempos atrás esse setor da economia existia e era importante, até que foi sufocado pela Bolsa de Valores, Faria Limers e rentistas. Um componente da Indústria era o “chão de fábrica”. Lá, no meio dos operários trabalhavam os supervisores, mestres, contramestres e encarregados. Uma espécie de sargentos civis, enfim. posto ao qual os operários olhavam com desconfiança e receio, mas também com uma mistura de inveja e esperança. Esperança de um dia poderem vestir um JALECO. Este é um espécie de casacão comprido, geralmente de cor cinza ou marrom, feito de um tecido resistente, que de longe, no chão de fábrica imediatamente identifica seu possuidor como alguém mais importante que a massa operária, como a ligação entre esta e os gerentes ou os patrões. Jaleco – símbolo da pequena fatia de poder que patrão concedia aos seus cães de guarda. O possuidor de um jaleco geralmente vota conservador quando não protofascista, seu tratamento dos outros depende estarem acima ou abaixo dele, e naturalmente, o dedo-durismo é uma de suas ferramentas de trabalho. Com essas características é claro que fica mais á vontade no chão de fábrica do que num escritório acarpetado, onde deve-se falar baixo e quase todos estão acima dele.

Bem, minha experiência dedo-durisma teve lugar numa tarde paulistana, na varanda de minha casa – refastelados em espreguiçadeiras, eu e essa pessoa estávamos comentando a greve do metrô. Ambos perto do ocaso da vida, aposentados e quase afluentes já não ´precisávamos nos espremer em seus vagões. No entanto meu companheiro estava furioso como se estivesse agora na estação da Sé, às sete da tarde no pleno da greve:

– Esses bandidos preguiçosos atrapalhando a vida de quem trabalha! De manhã vi na TV a confusão que era a estação Sé. São uns bandidos mesmo e a polícia devia ser jogada em cima deles.

– É, mas olha que parece que são dois anos sem aumento, eles tão se defendendo, né?

– Mas é serviço público, não devia ser permitido. Ah, se fosse há uns anos atrás… Isso nem começava

– Como assim?

– Veja só, tivemos um tempão sem greves, isso foi com os militares, Não me lembro que ano foi, 1969, 1970, sei lá. O fato é que em Osasco tentaram começar uma greve e o programa era evoluir para greve geral, imagina só! Daí que eu me apresentei para o gerente, aliás, foi ele que me chamou, chamou sabendo que eu era sujeito de confiança. Pra encurtar a história, saí da fábrica e me juntei a um grupo dos grevistas – naquele tempo eu já andava de jaleco pela fábrica, era supervisor da forjaria; assim tirei o jaleco e fiquei ouvindo os que diziam. Essa greve de Osasco nem aconteceu, mas dois anos depois teve uma de verdade.

– E repetiu a coisa?

– Como não! Os patrões tinham gostado e tive um aumento – ah, sem fazer greve, né? E também nessa greve de verdade eu ouvia e ia relatar aos patrões as reivindicações dos caras. Era uma boa coisa, não era? – assim a fábrica sabia de antemão os pedidos e se organizava melhor. Assim todos ficavam satisfeitos!

E satisfeito ele parecia, com seu dedo-durismo. Levei alguns dias para perceber a natureza das informações que ele colhia. Sim, pois reivindicações são a primeira coisa que o comando da greve levam aos patrões, não é? Então não eram reivindicações que o homenzinho que estava à minha frente naquele tarde levava ao seu chefe, mas nomes, nomes de colegas.

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PS – hoje encontra-se facilmente tudo na internet, até informação séria. Por exemplo, pode-se olhar as últimas teorias sobre Judas, que não o mostram como o crápula da tradição. E assim o Tiradentes, um pouco diferente das aulas de História do Brasil. Dante … aí é pedir demais! Mas não custa tentar.

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