Cuore, o livro – MC

          Anos atrás montei um projeto de cooperação científica com a Argentina, mais precisamente com um grupo do Departamento de Física da Universidade de Rosário. Lá passei alguns dias, e com tudo organizado nos despedimos com um belo churrasco. A certa altura, com meu portunhol disse que estava contente de estar em Rosário e que a primeira vez que vira este nome foi num livro. Neste havia uma história em que um menino vinha da Itália procurar sua mãe que lhe disseram estar em Buenos Ayres, mas que depois foi para Rosário, depois Córdoba e ele atrás desesperado…>

<Cuore> – me diz um dos colegas – <ora, ora, y como lo sabes> – <lo estudiamos em la escuela > responde ele.

Mas veja só, Cuore, de Edmondo de Amicis, leitura escolar na Argentina! Quem falou era o mais velho dos físicos, curso colegial provavelmente anos sessenta ou setenta. Mas enfim – Cuore.

O livro conta a história de um ano letivo na Itália do final do século XIX. Os personagens são alunos, seus pais e seus professores. A cidade é Torino e o narrador é Enrico, um dos alunos. A trama é interrompida várias vezes por contos edificantes, alguns meio chatos, abordando o patriotismo, o amor filial, a tragédia da emigração; são nove – um por mês contados em classe.

Não pretendo aqui fazer um resumo do livro – os há de muito bons na internet – mas de comentar o que se diz dele e o que podemos ganhar de sua leitura, lembrando que 2024 – 1886 = 138 anos e que Cuore se não é exatamente um clássico, o é quase.

Que ele não atravessou 138 anos intacto o dizem as letras MC do título, que significam: ‘Muito Criticado’. Sim, porque o livro foi massacrado por muitos, dentre eles alguns eminentes intelectuais como Umberto Eco, que achou que o único personagem que prestava era o menino Franti – o malvado, o contraponto a seus virtuosos e açucarados companheiros. Outro crítico é o filósofo Benedetto Croce – em voga na Italia dos anos 20 e hoje praticamente esquecido – que disse que o autor ‘não era artista puro, mas nada mais que um moralista’. Outra menos célebre mas mais recente crítica vem de uma blogueira tupiniquim. Ela inicia mostrando ter problemas com números: ‘um garoto italiano de meados do século XIX’, enquanto o livro retrata o ano letivo de 1881-1882. Dali em frente, qualificações como ‘datado’, ‘cheio dos preconceitos de seu tempo’, ‘lacrimoso’, imbuído de patriotismo cego’, ‘exaltação ao soldado’, e surpreendentemente: ‘fascista’. A blogueira não é muito original pois apreciações semelhantes aparecem em inúmeras resenhas.

Quanto ao datado, seria impossível que não o fosse pois se passaram 138 anos e mil eventos transformadores. Mas é datado na forma, não no conteúdo como veremos. Aos preconceitos de seu tempo podemos contrapor desfavoravelmente os do nosso: preconceito contra os pobres, contra negros e homossexuais, os diferentes de qualquer tipo e, porque não, os doentes. Dos soldados e patriotismo falaremos depois, mas a qualificação de fascista ao livro – portanto ao autor – é no mínimo ridículo:  de Amicis era não só socialista, mas se elegeu deputado nessa cor.

A primeira coisa que nos surpreende, nós gente de 2024, é a mistura de classes sociais que caracteriza a época (ou mistura que o autor quer mostrar como ideal): meninos pobres e meninos ricos sentam em relativa harmonia na mesma classe de uma escola estatal. O mesmo na ocupação urbana: Enrico é um menino rico, pai engenheiro (quando isso significava alguma coisa!) e mora no ‘andar nobre’ de um edifício habitado nos andares superiores por gente modesta. Essa mistura – real naquele tempo – vai frontalmente contra o apartheid de nossos dias, cujos resultado é a aversão ao pobre – a aporofobia – sentimento nucleado nas escolas particulares e alimentado nos guetos ricos, cujo extremo são os condomínios fechados, horizontais ou verticais que sejam, estritamente controlados por uma guarda pretoriana cujo objetivo é proteger o rico do pobre.

Não estou dizendo que em 1900 o mundo fosse menos preconceituoso do que o nosso – claro que os moradores dos andares nobres olhavam com superioridade para os dos ‘top flats’ e que de modo geral a pobreza era vista como consequência do vício e a riqueza o coroamento da virtude. Mas de Amicis nos mostra que as barreiras sociais não eram impermeáveis, e que a proximidade física as podia abalar. Verdade, em Cuore transparece um certo paternalismo. Mas são os fatos, as ações o que importa. Por exemplo, no dia 7 de novembro (o índice das várias edições do livro segue dias e meses daquele ano letivo) o pai do arrogante Nobis obriga o filho a pedir desculpas por uma frase mal dita ao Betti, o filho do carvoeiro. Não só: o rico senhor faz com que os meninos se abracem, mas pede ao professor que os coloque juntos na classe. Em 17 de novembro Enrico e o pai visitam o senhor pobre que mora no último andar do mesmo edifício em que moram, que fora vitimado por um acidente. E outros eventos do tipo. Paternalismo talvez, afinal estamos no século XIX, mas o ato concretamente gentil e humano fala alto. Na utopia descrita por de Amicis o sentimento de pertencer ao gênero humano é mais forte do que o de superioridade e subordinação que se estabelece entre o pobre e o rico. Às vezes há exageros na caracterização de personagens: as figuras de Garrone, defensor dos pobres e personificação de coragem e bondade, e de Derossi o primeiro da classe, com todos gentil e prestativo, intocado por sentimentos de superioridade. 

De Amicis Cuore
Corazón

Apesar dessa visão otimista, de Amicis é um realista e nos lembra que no mundo existe a maldade, personificada por Franti, a soberba e a inveja por Votini e Nobis.    

Nas resenhas do livro as críticas mais contundentes ordenam-se em três classes:

  1. Exaltação da pátria e seus símbolos; o exército e a guerra principalmente
  2. Cartas dos pais ao Enrico
  3. Estilo lacrimoso

A primeira é facilmente desmontada. Antes de 1861 a Italia não existia como país; sua unificação só foi completada em 1970, com a conquista dos territórios do papa – Roma e terras adjacentes. Imagine reunir regiões que falam dialetos profundamente diferentes, que tem modos de vida tão diversos uns dos outros, que mesmo o turista de hoje pense estar em países diferentes quando percorre a bota de norte a sul. Imaginemos – apenas vinte anos depois da Unificação – o estranhamento da reunião de gentes historicamente tão diferentes, o que de Amicis nos ilustra bem com a chegada do menino calabrês na classe – um tipo de racismo branco-branco. Nessas circunstâncias patriotismo é necessário; aliás faríamos bem a desenvolve-lo mais hoje para contrabalançar nosso complexo de vira-lata, Quanto à exaltação do exército, sim, é verdade existe. Porém não devemos esquecer duas coisas: (i) a Unificação foi conseguida com a força das armas – não eram soldados que passavam seu tempo pintando postes e meios-fios, e (ii) no dia 11 de junho, no desfile militar, o pai de Enrico o adverte a não considerar os soldados, canhões, cavalaria e bandeiras como um belo espetáculo apenas, e lhe lembra que tudo aquilo pode se transformar em cadáveres e sangue. Uma toque de realismo, que se contrapõe validamente ao militarismo que se seguiu à Unificação.

As cartas: sim, a linguagem é meio, assim…. lacrimosa mesmo. Mas estamos no século XIX! Já leu Rui Barbosa, Euclides da Cunha e congêneres? Difícil hoje, não é? Mas o conteúdo é muito atual – claro que em 2024 nenhum pai se sonharia de escrever cartas ao filho, que está no quarto ao lado. Hoje porém vivemos o extremo oposto – com a acessibilidade e multiplicação dos meios de comunicação esta está se tornando cada vez mais breve e telegráfica com WhatsApp, Facebook, e-mail e outros. As cartas do livro contém valores universais e fora do tempo, por exemplo, respeito ao outro independentemente de posição social, civilidade, construção da personalidade, valor dos bons exemplos, humanidade. E tudo não em três palavras na tela do celular.     

Termino por aqui, admitindo que muitas das críticas feitas ao livro tem fundamento: paternalismo, excesso de respeito às autoridades (militares especialmente), exaltação ao heroísmo, estereótipos na construção de alguns personagens, “açúcar” demais etc. Mas se colocarmos prós e contras, virtudes e críticas numa balança, esta penderá para o lado que te fará ler o livro.

3 comentários em “Cuore, o livro – MC”

  1. Lembro que li Coração por volta de 1950 quando eu tinha 9 anos.
    Recordo que a impressão que ficou e que dura até hoje é que era um livro muito triste apesar de ter gostado muito de sua leitura.
    Nunca mais o li e dada a minha idade na época eu não tenho condições de apresentar nenhuma crítica quanto ao seu mérito.

  2. Anavecia Bastos de Goes Ceratti

    Bom dia Maurizio, muito interessante e inteligente a proposta do seu site , desejo-lhe sucesso e muita gratificação pelo trabalho. Um grande abraço !

  3. Rubén Galindo

    olá Maurizio
    Excelente a ideia do blog. Parabens
    Creio que depois do CRUSP nunca mais o vi , más acompanhei parte da sua vida pela Soninha com quem estive casado por 29 anos.
    abraço
    Rubén

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