A difícil transição energética

Neste final de semana recebi a agradável visita de um casal de amigos. Ela trabalha na área de transição energética e é craque no assunto, por isso não hesitei em explorá-la o mais que pude sobre esse interessante e importantíssimo tema. Assim, gostaria de aqui recuperar um pouco desse papo. Para isso fiz um “resumíssimo” de um recente artigo que aborda o mesmo tema do fim de semana, mas de modo mais estruturado. Trata-se da resenha do livro:

Brett Christophers, The Price is Wrong: why capitalism won´t save the planet, Verso (2024)  

escrita por William Davies e publicada no London Review of Books V 46, n 7, April 2024.

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E aqui vai:

Um corolário da ideologia liberal – que tem como um dos seus dogmas que a atividade econômica é majoritariamente regida por preços e incentivos – é a total inabilidade dos entes políticos entenderem a questão da transição energética, da qual depende o nosso futuro. A premissa dos economistas é que as energias renováveis tem maior custo que as convencionais, portanto necessitam de subsídios do governo. Houve um momento (2015) em que a International Energy Agency (IEA) criou condições para a retirada desses subsídios substituindo-os pelos mecanismos de demanda-preço, mas nada aconteceu.

A explicação? Lucro. Hoje empresas como a Shell objetivam um retorno/investimento de uns 15%, mas as renováveis geram entre 5 e 8%, apenas. Sim, a Shell e as outras desejam um mundo descarbonizado, mas… tem a questão $$$$$!

A descarbonização pode ser atacada em diversas frentes, mas a geração de energia elétrica é a mais importante (37,5% das emissões de CO2 resultam de geração de energia, o resto é indústria, aquecimento, transporte e agricultura). Portanto, novas formas de geração e uso – carros elétricos, p. ex. – da eletricidade é a prioridade óbvia.

O desafio é imenso:

– 61% da energia elétrica vem de combustíveis fósseis (2022);

– 12% de vento + solar;

– Na China são inauguradas duas novas centrais elétricas/semana – tocadas a carvão;

– Zerar emissões de CO2 em 2050 significa levar a contribuição vento+solar a 68% e carvão fóssil a zero. Esse o requisito para evitar aumentos de 1 a 2oC na temperatura global. Se ele pode ou não ser alcançado depende da operação das instituições políticas e econômicas. Hoje, o setor de energia segue as ideologias de livre mercado e economia neoclássica, e incentiva competição e tecnologia para aumentar produtividade e lucros. Para isso as agências reguladoras procuram reduzir monopolização e ativar mecanismos de mercado.

Preços são afetados por vários fatores, custos flutuantes dos combustíveis fósseis, por exemplo, e as peculiaridades da geração de eletricidade: plantas eólicas e solares tem custos de construção elevados (10 a 20 anos para retorno), mas baixos de operação. Isso, mais o fator de que as fontes renováveis dependem de tecnologias novas, as deixam à mercê dos caprichos e preconceitos dos investidores. Assim, financiamento torna-se o obstáculo crítico, o ponto em que projetos são bloqueados permanentemente. Os investidores não escolhem entre tecnologias sujas (tocadas a combustíveis fósseis) e limpas (vento ou sol), mas fazem sua análise em termos do potencial dos diferentes ativos. De fato, em seu tempo Marx comentou que a única preocupação do capitalista é como transformar dinheiro em mais dinheiro, e não está definido que os renováveis sejam um bom caminho para isso, apesar do baixo custo de operação.

A questão é que o investidor quer contar com certezas sobre o retorno futuro de seu investimento, ou quer um ‘premio’ para aceitar algum grau de risco O desafio para o setor de renováveis é conseguir persuadir o investidor de que ele poderá obter bons lucros em um mercado com alta volatilidade de preços e pouca segurança. Porém, sempre que tecnologias renováveis apresentam desempenho satisfatório, novos provedores aparecem jogando preços para baixo, e os investidores se retraem para posições mais conservadoras.

O que investidores querem é estabilidade de preços, ou pelo menos previsibilidade; risco é aceitável, mas incerteza fundamental não.

Julgando em termos de descarbonizacão, as políticas de maior sucesso não são as que reduzem o preço de eletricidade – o que beneficiaria os consumidores – mas aquelas que o estabilizam – beneficiando os investidores. 

Enquanto isso a extração e queima de combustíveis fósseis continua sendo o modo mais confiável de produzir os retornos financeiros que agradam a Wall Street e similares ídolos financeiros.

Apesar do entusiasmo que está acompanhando a diminuição de custos das energias eólica e solar, o autor do livro The Price is Wrong não acredita ‘que exista no mundo um único exemplo de projeto que utilize fontes renováveis sem o suporte de subsídios’. O que incomoda fortemente é que enquanto a eletricidade de fontes renováveis mantem-se pendurada em subsídios, isso não resulta em dinheiro retido no bolso do consumidor, mas em lucro para o empreendedor e os administradores de ativos.

É um paradoxo que a ideologia que preza livre mercado e a cultura do empreendedorismo (contra a formação de conglomerados e monopólios) não livre o setor da dependência do Estado. A lição que Christophers retira disso é que a eletricidade ‘não era e não é o campo adequado para mercantilização e geração de lucro’. Sob o ponto de vista ecológico, dificilmente o neoliberalismo podia ter chegado em momento mais desfavorável.

O que pode ser feito? Inútil esperar que o setor elétrico vá conduzir a transição energética, quando é o setor financeiro que comanda. Recentemente a administração Biden propôs entrar com a diferença entre lucro esperado e lucro real, usando diferentes subsídios e impostos. Assim em 2022, o Presidente assinou Lei que promete US$ 369 Bi ao longo de 10 anos. Pelo menos isso é uma reação ao fato de a maior proporção do poder de moldar o futuro estar nas mãos dos administradores de ativos e banqueiros.

Não há razão econômica por que um retorno de 15% sobre o investimento seja considerado “normal” e não há nada definitivamente ruim em um projeto que renda 6%. O problema, Christophers explica, é que os investidores escolhem quais dos dois números preferem e nenhum governo é capaz de forçar, por exemplo, a BlackRock a lucrar menos. Onde o programa de Biden falha é que há poucas condições impostas aos projetos que se beneficiam das reduções de impostos, e não contempla penalidades para os que continuam investindo em combustíveis fósseis.

A opção mais ambiciosa, mas politicamente mais difícil de passar é uma espécie de New Deal verde, no qual o Estado traz a si uma alta proporção dos custos e riscos do empreendimento. Uma vez aceito que a eletricidade mão é uma commodity típica, e que a urgência da descarbonização supera qualquer cálculo de risco-benefício, faz sentido abandonar por completo a confiança no mercado. Assim, algo parecido com economia de guerra pode se impor, na qual o Estado estende ao máximo sua credibilidade financeira para investir em renováveis com a velocidade que a emergência climática requer.   

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