Svevo e Schnitzler – Suas Interfaces com Freud

Este texto vem de um projeto para um exame de mestrado, que não deu muito certo. Por isso parece um pouco formal e engessado, mas creio seja útil para apresentar a quem não os conhece, dois autores que amei muitíssimo.

O cortei pela metade e espero que gostem.

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Arthur Schnitzler e Italo Svevo, são muito próximos, tanto no espaço como no tempo; assim:

Arthur Schnitzler, Viena 1862 – 1931;

Italo Svevo, Trieste, 1861 – 1928.

Essas cidades são separadas por pouco mais de 300 km, mas a verdadeira proximidade é expressa pelo ambiente social e a efervescente vida cultural das mesmas. De fato, o período entre a guerra Franco-Prussiana e a primeira guerra mundial foi uma era de paz e tranquilidade que ensejou o aparecimento do modo de vida e relações culturais conhecidos como belle epòque, que encontrou em Viena terreno fértil, tanto que no início do século XX ela foi considerada a capital cultural da Europa. Basta pensar na música, na ciência e filosofia (o Círculo de Viena, Freud), na pintura (Klimt, Schiele) e na arquitetura, ensejando uma efervescência de ideias que continuou até a entrada no nazismo em 1934.

Por sua vez, Trieste, como todas as cidades europeias de fronteira, era e ainda é um centro extremamente cosmopolita. Inicialmente sob o domínio da Áustria sentiu a influência simultânea da Eslovênia e da Itália, até que foi definitivamente incorporada a esta última em decorrência da primeira guerra mundial. Centro de grandes estaleiros, sólidas empresas de seguros e de navegação, atingiu seu apogeu econômico no início do século XX. Fala-se um italiano algo estranho, o triestino, com influência das línguas slovena e alemã, essa ainda falada por cerca de 5% da população. Vale lembrar que Italo Svevo é o nome de pena de Ettore Schmitz, o pseudônimo tendo sido escolhido para refletir a dualidade cultural e nacional do autor – Italiana e alemã (Svábia – região a sudoeste da Alemanha). 

Outro ponto em comum de Schnitzler e Svevo: não eram escritores tempo integral. O primeiro formou-se em medicina e praticou a profissão durante algum tempo até passar definitivamente à vida de escritor. Italo Svevo iniciou trabalhando em um banco como tradutor, o que abandona para se dedicar à administração de uma grande empresa de tintas anticorrosivas para navios, de propriedade do sogro. Mas enquanto Schnitzler descreve uma sociedade tipicamente vienense, os ambientes de Svevo não soam italianos, inclusive, o autor era cidadão austríaco até o final da Grande Guerra. Seu modo de escrever foi considerado imperfeito por alguns puristas, impressão que dissipou-se mais recentemente, embora o tema seja ainda discutido.  

RESUMO DAS OBRAS

Arthur Schnitzler – O caminho para a liberdade (1908)

            Escrito entre 1902 e 1907 é a história de Georg von Wergenthin, músico e aristocrata que se apaixona por um moça simples, relativamente pobre, a cantora iniciante, Anna Rosner. Após algum tempo Anna lhe revela sua gravidez e Georg, mesmo sem muita vontade continua a relação para protege-la, mas quando o bebê morre ao nascer Georg a abandona e inicia o que ele considera ser uma “fuga para a liberdade”. Em torno desta história central orbitam outras histórias que descrevem a perda de valores e o declínio da sociedade burguesa da Viena no final do século XIX. Este romance é o preferido de Schnitzler, que escreveu inúmeras novelas, contos e peças teatrais, a ponto dele mesmo considera-lo igual ao Os Buddembrooks de Thomas Mann e de lhe prever longa vida. Pode ser lido tanto como drama humano como um retrato da sociedade de seu tempo – Senhorita Esle, é um belíssimo exemplo.

Italo Svevo  – A consciência de Zeno (1923)

            É a obra principal de Svevo; sua qualidade foi reconhecida por James Joyce, que ajudou a fazê-la conhecida e assim lançar em 1923 seu autor na comunidade literária internacional. Basicamente trata-se da autobiografia ficcional de Zeno Cosini, um bem-sucedido homem de negócios de Trieste. Com humor que às vezes resvala para o negro, é contada a saga de Zeno, suas tentativas frustradas de deixar de fumar, seu namoro com a bela mas distante Ada, seu casamento com Augusta, a irmã de Ada (que resultou em uma união inesperadamente feliz), e a aventura com uma estudante de música. O romance coloca em primeiro plano a indecisão e incapacidade de Zeno em resolver suas contradições. Pouco à vontade no mundo burguês – que é o seu – persegue uma felicidade que sabe ser irrealizável e é atormentado por um excesso de autoanálise, mas ao mesmo tempo tem a capacidade de não se levar excessivamente a sério. Como plano o romance estrutura-se em seis partes: “o cigarro – a morte do pai – a história do meu casamento – minha mulher e minha amante – história de uma associação comercial – minha psicanálise”.

            A essa altura deve ter ficado claro que ambos os romances são de fundo psicológico, porém tem diferentes centros de gravidade.

Arthur Schnitzler é conhecido à crítica por ter introduzido a técnica do monólogo interior intensamente praticado por Virginia Woolf, com a qual passou a se denominar stream of consciousness. Uma característica de Schnitzler é a contínua justaposição de razão e instinto, amor e sexo, olhos abertos na vida consciente e olhos fechados no sonho, o que, mesmo antes de Kubrick (diretor de Olhos Fechados, filme baseado na novela Sonho Duplo) tanto interessou a Sigmund Freud (1836-1939). Este se surpreendeu com certas intuições de S, que pareciam coincidir com resultados empíricos que lhe custaram anos de trabalho, como confessa em uma das dez cartas que escreveu ao escritor, da qual transcrevo aqui os trechos mais relevantes.

14 de maio 1922

Prezado doutor

Agora que também o senhor chegou ao 60o aniversário …

(……….)

Mas quero fazer-lhe uma confissão, que por consideração a mim o senhor deveria preferir guardar para si e não dividir com nenhum conhecido ou estranho. Ao longo de todos estes anos, atormentei-me com a pergunta, sobre o por que não ter tentado entrar em contato com o senhor e ter consigo uma conversa (sem levar em consideração, é claro, se o senhor mesmo veria com bons olhos tal aproximação). A resposta a esta pergunta contém a confissão, que me parece demasiado íntima. Penso que eu o evitei por uma espécie de temor ao duplo (……..)

Sempre que me deixo absorver profundamente por suas belas criações, parece-me encontrar, sob a superfície poética, as mesmas suposições antecipadas, os interesses e conclusões que reconheço como meus próprios. Ficou-me a impressão de que o senhor sabe por intuição – realment, a partir de uma fina auto-observação – tudo que tenho descoberto em outras pessoas por meio de laborioso trabalho.”

(……)   Em sincera devoção

            Sigmund Freud

Essa carta mostra as semelhanças dos dois homens, que tem muito em comum quanto às origens e primeiros passos dados em suas vidas intelectuais. Ambos judeus vienenses, não sem conflito estudaram medicina e exerceram tal profissão. De Freud obviamente sabemos a especialidade; a de Schlitzler era neurologia, abandonada como profissão quando definiu-se como escritor. ________________________

            Italo Svevo aproximou-se de Freud por vários caminhos; leituras juvenis de Schopenauer lhe transmitiram sua visão pessimista e irracionalista da vida, experiências terapêuticas de parente e amigos, leituras pessoais e sua tradução para o italiano de um resumo que o próprio Freud escreveu sobre A Interpretação dos Sonhos. Svevo pensa ter encontrado na psiquiatria a chave para a explicação científica do mundo interior do Homem, especialmente depois da leitura de várias obras de Freud. É interessante e revelador notar que A consciência de Zeno inicia com um prefácio escrito pelo personagem fictício Dr. S., que seria o psicanalista de Zeno.  Esse psicanalista, no início do tratamento pede ao paciente que como forma de substituição da análise presencial escreva uma autobiografia de abordagem livre. Daí, o médico declara que decidiu publicar por vingança os escritos nos quais seu paciente reporta seus problemas, e o faz em resposta ao abandono do tratamento, que evidencia a falta de confiança no método por parte de Zeno (é como se S. fosse o editor do livro). Aliás, no restante do livro transparece a atitude pouco respeitosa do protagonista com respeito à técnica da psicanálise.

No decorrer do romance são feitas diversas referências à psicanálise, iniciando com a questão das inúmeras tentativas frustradas de Zeno para de parar de fumar. Aliás, o fumo é encarado como ritualização da neurose obsessiva de Zeno. Outras referências são sua difícil relação com o pai, o casamento com Augusta, a irmã menos atraente da realmente desejada, o romance cheio de idas e vindas com a humilde e pobre Carla, e uma profusão de sonhos. De modo geral a crítica concorda em considerar Zeno como um personagem inadequado, pouco à vontade na vida burguesa, separado da sociedade e oprimido por uma sensação de inferioridade, e é justamente por isso que se submete à psicanálise. A grandeza do autor está na “mineração do inconsciente”, uma novidade no romance moderno, que permite um olhar objetivo sobre as motivações do ser humano até então rotuladas de “manias”, por exemplo, a dependência do cigarro. Notar que definidas como simplesmente manias essas manifestações evitavam aprofundamentos e estudos, que só tomariam forma com o advento da psicanálise     

Dito isso, porém, é importante notar que após alcançar seu sucesso literário, Svevo se preocupou e mostrar os limites de sua relação com Freud. De fato, contos e novelas produzidas depois de sua obra principal evidenciam uma espécie de afastamento irônico da psicanálise, e ainda, algumas cartas sugerem uma definitiva antipatia às teorias freudianas. A respeito dessa atitude, estudos recentes julgam que entre outras coisas, A Consciência quer ser a negação romanceada de Freud, um sintoma da controvertida recepção que a Italia deu ás teorias desse autor. Mais ainda, o livro expressa um dos primeiros sintomas da rejeição que aquele país reservava à psicanálise. De fato, a cultura italiana olhava com suspeita a noção do inconsciente freudiano, considerado uma manifestação “gótica”, “mais adequada a almas introvertidas e complexas como as Anglo-germânicas e Francas, que contrasta violentamente com a luminosidade do Renascimento e a extroversão mediterrânea da cultura italiana”. Assim, A Consciência é uma das primeiras manifestações na Italia da reflexão sobre o inconsciente, e ao mesmo tempo é um eco daquela problemática recepção inicial. 

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