Em todas as cidades do Brasil, especialmente as menores e médias, o VW dito “fusca” (não gosto desse apelido – já expliquei no post anterior) é figura frequente desde os anos ’50. O que mais impressiona, porém é que ele existe desde os anos ’30, mais especificamente 1936, ou seja há 88 anos!
A história do carro é conhecida; alguns se escandalizam por seu passado nazista mas creio que exageram. Afinal, como um amontoado de aço, alumínio, magnésio e vidro, organizado racionalmente, poderia ter absorvido sentimentos nazistas? Mas realmente foi o ditador alemão quem ditou as especificações gerais do carro: espaço para dois adultos e três crianças, velocidade máxima de 100 km/h, consumo de 7 litros por 100 km (ou 14 km/L – que otimismo!), subir desníveis de 30%, refrigeração a ar e preço não superior a 1000 Marcos. Evidentemente esse desempenho estava na mente do ditador nazista e não foi possível realiza-lo em todos os aspectos. O realizador foi o engenheiro austríaco Ferdinand Porsche, que antes do VW já mostrara suma competência como projetista e fabricante de automóveis.
E ele logo mostrou a que veio, inicialmente com dois autos praticamente feitos em casa:
KDF-Wagen (1936) —————————————- Volksauto NSU (1935)
O Volksauto foi um protótipo desenvolvido para a NSU, mas a fábrica frente aos altos investimentos previstos preferiu se concentrar em sua produção de motocicletas.
O VW como conhecemos foi apresentado no Salão do Automóvel de Berlim em 1939, mas os ventos da guerra já sopravam pois em setembro Hitler invade a Polônia. De qualquer modo, a fábrica foi construída, mas passa a produzir peças aeronáuticas e armamento. Inicia a produção do Kuberwagen – o jipe alemão – nada menos que 66285 foram produzidos até 1945.
As principais etapas da vida do VW na década de ’40 são as seguintes:
1941 – produzidos 640 carros destinados à elite nazista. Os civis tinham entrado no “conto das estampilhas” – deviam colecionar um número X e receberiam o carro. Só que a produção comercial de veículos só começaria depois da guerra e ficaram “a ver VW”, o correspondente a “ver navios”;
1943 – produção de material bélico, inclusive das “bombas voadoras” V1 destinadas à destruição de Londres;
1944 – Por três vezes a fábrica é bombardeada por aviões americanos;
1945 – Forças estadunidenses tomam a fábrica e libertam os prisioneiros-operários (sim, havia isso, mas era uma constante de toda a Indústria alemã). A responsabilidade da Empresa passa ao exército britânico que para seu uso encomenda a produção de 20000 carros, com início em abril;
1946 – produção de 1000 carros/mês, ritmo que se manteria até 1948. A administração britânica suspende por quatro anos uma decisão anterior de desmontar a fábrica;
1948 – a Empresa VW é entregue ao governo alemão. Seu primeiro diretor-geral é o Dr. Heinrich Nordhoff, nome que se tornou famoso na História da Indústria alemã.
A literatura sobre essa época menciona que essa devolução foi devido à falta de interesse dos britânicos pela Empresa. Ela estava sob responsabilidade do exército britânico, e foi oferecida ao seu governo e aos da Austrália, França, Estados Unidos e Russia (os vencedores da II Guerra!), sem sucesso. O livro de F. Kataoca e P. Tavares, Almanaque do Fusca. Ediouro (2006) cita as conclusões de uma missão britânica enviada para decidir sobre a viabilidade de continuar a fabricação do carro:
– “O veículo não dispõe dos requisitos fundamentais de um automóvel”;
– “É muito feio e barulhento. Poderá ser popular por um ou dois anos no máximo”.
O livro menciona que opiniões semelhantes foram dadas pelos franceses, pelos russos e também por Henry Ford. Porém, basta uma olhada à indústria automotiva daquela época para estranhar e muito essas opiniões sobre o VW. Vejamos alguns exemplos de autos fabricados em 1945 – 1946:
Ford (1946) ———————————————- Morris (1946)
VW sedan (1945)——————————————– Anglia (1953)
O contraste é impressionante; os dois ingleses e o norteamericano parecem pertencer a outra era, da qual o pobre Anglia sobreviveu até 1953. Difícil acreditar que a missão britânica tenha sido tão cega, mas é o que a maioria das fontes indica.
Embora Ferdinand Porsche seja celebrado como o idealizador do revolucionário projeto do VW o carro tem um precursor ilustre, filho da indústria de veículos mais antiga que se conhece, a Tatra. Fundada em 1850 na Checoslováquia produziu seu primeiro veículo que se pode chamar de automóvel em 1897. Os realizadores do Tatra moderno foram Hans Ledwinka, o alemão Erich Uberlacker e outros, sendo o primeiro aquele do qual Porsche disse ter “espiado por cima de seu ombro” muitas vezes. Os carros da Tatra candidatos a terem inspirado o VW são os seguintes:
V570 1931 -1933, 2 cilindros opostos ———————–T77 1934, 8 cilindros em V
T87 1936 – 1950, 8 cilindros em V ——————-T97 1936 -1939, 4 cilindros opostos.
Considerando que o VW fora apresentado ao público em 1939 e que seu projeto teria iniciado uns dois anos antes, qualquer um dos modelos da Tatra podia ter sido espiado por sobre o ombro de Ledwinka. Porém, observando a semelhança entre o V570 e o Volksauto – NSU e com o próprio KDF-Wagen de 1936, a semelhança sugere que esse tenha sido o início do VW de Porsche. Os T87 e T77 são carros grandes com motores V8 resfriados a ar, mas a Tatra resolveu lançar uma versão menor, o T97 com motor de 4 cilindros plano que mantém grade semelhança com o correspondente do nosso VW.
Antes de continuar, mais umas palavras sobre esses fantásticos Tatra. Por exemplo, o T87 de 1936, com seu motor V8 de apenas 85 HP resfriado a ar alcançava os 160 km/h, isso quando um auto americano ou europeu do tipo sedan (não esportivo) não passava dos 100 – 120 km/h. Aquele desempenho com tão baixa potência se deve à excelente aerodinâmica do carro, com um Cx = 0,36. Esse parâmetro é denominado ‘coeficiente de arraste’ e pode ser entendido imaginando uma chapa, plana, sujeita à ação do vento (representeado pelas setas).
Cx = 1,0 Cx ≈ 0,0
Quando o vento atua perpendicularmente à chapa, o arraste é máximo e Cx = 1; quando atua paralelamente à mesma o valor do arraste se aproxima de zero.
O modelo T77 tem um Cx = 0,25, superior à maioria dos automóveis modernos; com essa aerodinâmica seu motor, de apenas 60 HP, levava facilmente seus 1700 kg a 150 km/h. É preciso lembrar que trata-se de carros grandes, com área frontal igualmente grande e não de esportivos com um metro e tanto de altura. Naturalmente, o baixo arraste se traduz em baixo consumo.
Retornando ao famoso fusca, ou beetle, dois dos vários nomes que o VW sedan adquiriu aí pelo mundo: seu perfil é de uma asa invertida: em cima tem curvatura positiva e em baixo uma superfície plana, não tão bem fechada como a dos Tatra, mas suficiente para ali provocar fluxo laminar (sem turbulência) do vento. A curvatura do teto aumenta a velocidade do ar ali com respeito ao fundo do carro (devido ao percurso do ar ser mais longo do que embaixo), e isso diminui a pressão vertical exercida pelo ar sobre o teto. Portanto o perfil do carro atua como uma asa, com alta pressão em baixo e baixa pressão em cima. Assim, o que faz o avião se manter no ar – a sustentação (e essa é a explicação mais aceita mas não a única para a sustentação) – trabalha contra a estabilidade do VW, levantando sua traseira em alta velocidade. Além disso ele tem um Cx bastante elevado, entre 0,48 e 0,49, que se sai bastante mal em comparação a outros carros:
– Mercedes 190: 0,33 – 0,35;
– Porsche Carrera: 0,38 – 0,39;
– Jaguar XJ-S: 0,40 – 0,41.
O mau desempenho aerodinâmico do VW se deve ao para-brisa plano e pouco inclinado e ao fato de o fluxo de ar se destacar da traseira do carro, provocando turbulência local.
Mas não há dúvida que o ponto alto do VW é o motor, tenha ou não sido inspirado pelo 4 cilindros plano do Tatra T95. Desde seu nascimento passou por uma evolução no tamanho com a potência passando de 36 para 65 HP (no motor 1600 a potência varia de versão para versão).
1100 cm3 – 1200 – 1300 – 1500 – 1600
O motor plano é compacto, ocupa pequeno espaço e todos os cilindros obtém excelente refrigeração, ao contrário de motores “em linha”, isto é com os cilindros um após o outro, disposição que, por exemplo, em um quatro cilindros prejudica um pouco a refrigeração dos cilindros 2 e 3. Detalhe importante: o bloco do motor e caixa de cambio/diferencial são fundidos em magnésio, metal cujo peso é 1,6 vezes menor que o do alumínio. Além disso, a fundição daquele metal requer tecnologia bastante sofisticada.
Animação do motor 1200 de quatro cilindros opostos 2 a 2. Essa disposição é semelhante em todos os tipos de motores VW planos. O corte é transversal e perpendicular ao eixo virabrequim, o que esconde os outros dois cilindros.
Atrás foi citado que a tampa do motor é lugar de turbulência de ar, o que deixado a si mesmo prejudicaria a refrigeração. Isso não ocorre pois a ventoinha suga o ar para a região do motor, este que junto com a ventoinha é encerrado em uma espécie de envelope metálico que concentra a refrigeração. Ainda, o motor conta com um radiador de óleo, detalhe apenas encontrado em carros de alto desempenho.
Mas o chique não está apenas na parte mecânica. A carroceria, curva em duas direções, com raio variável, atua como uma estrutura tipo casca. E chega ao ponto de nos oferecer este elegante mas simples detalhe art nouveau: