Desta vez quero mostrar dois textos do meu amigo Sergio Lopes, fino observador de coisas e pessoas, e que para isso me autorizou. Estão no seu livro “Peneira do Tempo”, e abrir suas páginas é como espiar, desapercebido, o maravilhoso, estranho e muitas vezes divertido funcionamento do mundo.
Paisagens noturnas
Outro dia um grande amigo perguntou, a si mesmo ou a mim, não sei bem, quanto vivem e como morrem os bares de são Paulo.
Achei a pergunta interessante.
Meu primeiro bar, na década de setenta, o Riviera, era na Consolação perto da Paulista. Os tempos eram difíceis e não eram muitos os lugares onde as pessoas podiam se reunir. Apesar do clima político asfixiante que reinava na cidade e no país, o lugar era uma festa. Todo mundo ia lá. A casa viu passar tanta gente criativa e inteligente, que até seus garçons tiveram seus quinze minutos de fama. Foi o Paribar de minha geração. Ao lado havia o famoso Ponto Quatro, que tinha o melhor – e maior – filé à parmegiana da cidade. De tão macio, era cortado com uma colher pelo garçom.
A entrada do Riviera com sua parede de tijolos de vidro. Na porta, parece ser o saudoso “Cantinflas“.
Meio que na mesma época apareceu um barzinho estreito, ao lado de uma churrascaria no centro, chamado Mais Um. Ia lá de vez em quando, mas a população era mais ou menos a mesma do outro bar.
Depois veio o Lei Seca. Era distante, depois da estátua do Borba Gato, mas fez um sucesso tremendo. Com música ao vivo, se bem me lembro, a conversa para lá de animada: era um lugar transado, cheio de pessoas interessantes.
Uns quinze anos mais tarde, depois de casar e criar filho, lá estava eu, de volta à noite. Foi quando abriram o Speakeasy. Um bar pequeno com música de primeira, situado na Consolação, logo abaixo da Oscar Freire. A calçada em frente ficava cheia de gente querendo entrar ou sair. Era tão bom que até ficar na frente, sem entrar, era programa.
A seguir veio a era dos pubs. Já mais velho, sentia-me melhor entre as madeiras e as cervejas escuras> O primeiro deles, se não me engano, era o Queen´s Legs, ali na Melo Alves. Jogavam-se dardos, conversava-se com estrangeiros, residentes ou de passagem, um ambiente muito inglês e muito civilizado.
Lembro-me de outros, que não duraram muito, mas que ficaram conhecidos em sua época, como o Jungle e, anos depois, o Van Helsing, em frente ao cemitério na Cardeal Arcoverde.
Todos cujos nomes mencionei já não existem mais. Vieram e se foram com suas turmas e seus frequentadores.
Quem não frequentou esse bar não é boa pessoa. Ponto Chic no Largo do Paissandu, aberto dia e noite.
Muitos outros, no entanto, estão aí até hoje. Esses souberam se renovar. Não no sentido de fazer uma reforma nas instalações, mas de atualizar, inspirar novos grupos de frequentadores, criando novas histórias, deitando raízes mais profundas.
Voltei àquele primeiro bar outro dia. Estava no mesmo lugar, praticamente igual. Estavam lá as mesas e as cadeiras, o balcão de fórmica vermelha, a escada curva da década de cinquenta, beirando a parede de tijolos de vidro, as colunas, e até o mesmo dono empoleirado atrás da mesma caixa registradora.
A famosa escada que leva aos discretos separés. Os também discretos garçons, só subiam quando insistentemente chamados.
Mas o Juvenal e o Zé, os inesquecíveis garçons, não estavam. Tampouco o zunzum, o entra e sai e o ar enfumaçado, nem ninguém que eu conhecesse ou que já tivesse visto. Olhei bem, prestando bastante atenção e, de repente, me dei conta: eu também não estava lá! eu era apenas um fantasma arrastando minhas correntes, de visita ao velho castelo.
Um bar não é um prédio, um endereço ou um nome. Um bar é um momento no tempo, um conjunto de circunstâncias. São pessoas comparecendo a um encontro sem terem combinado. É um lugar onde todos te conhecem, e você conhece todos, mesmo que só de vista, como naquele antigo seriado da TV. Um bar é o cruzamento de histórias simultâneas, amores à primeira vista, coincidência, amizades de ocasião, pares desfeitos e noites memoráveis. É uma estrela de mercúrio iluminando a paisagem noturna. Pode ser uma estrela cadente ou uma supernova, durar muito ou pouco no universo físico, não é isso que importa. Bares não morrem. Mesmo os que se foram, não morreram. Apenas ficaram invisíveis. Vivem na memória das pessoas e na história de cidade.
Brindemos a eles!
Ruadas
Corrida: em um cruzamento com semáforo, um pessoa fica na ilha, diante da faixa de pedestres, imóvel ou ligeiramente hesitante, até que a luz fica verde para os carros. Nesse instante, suicidamente, sai correndo pela faixa em direção ao outro lado, na frente dos carros
***
Invisibilidade: andar uns quatro passos atrás de uma mulher deslumbrante, no vácuo dela.
***
Bailado: duas pessoas param uma em frente da outra e se movem lateralmente, para o mesmo lado e ao mesmo tempo, procurando passagem. Dura alguns segundos.
***
Habitantes: loucos de rua sempre usam alguma coisa à guisa de chapéu, moradores de rua não.
***
Alameda Casa Branca esquina Rua Barão de Capanema; é o 15 de abril 1971. Quem estava lá se lembra desse dia.
Sapatos: ou solteiros no meio da rua, ou em pares pendurados nos fios.
***
Ambulantes: a ausência quase total de mendigos calvo
***
Trânsito: no mesmo instante em que a luz do semáforo fica verde, um segundo motorista toca a buzina.
***
Transporte: Ônibus que para fora do ponto para que desça ou suba alguém especial, uma mulher bonita, um senhor de idade ou um amigo.
***
Tráfego: quanto maior o tráfego de pedestres nas calçadas, maior a tendência de eles usarem a mesma mão de direção dos carros.
***
Passagem: a guerra cotidiana entre o direito de passagem dos pedestres e os carros que saem das garagens.
***
Cortesia: desviar o jato ou desligar o esguicho para a passagem de um pedestre quando se está lavando a calçada.
***
Tarde: cachorros que dormem placidamente quase no meio da rua e saem preguiçosamente quando um carro buzina pedindo passagem. Somente em ruas de muito pouco trânsito.
***
Vista: gatos ou cachorros pequenos dormindo em janelas que dão para a rua. Ou então observando o movimento.
***
Caminho: barquinhos de papel descendo pela enxurrada junto ao meio-fio. Coisa rara hoje em dia.
***
Sede: pedir para dar um gole de água na ponta da mangueira de quem está lavando a calçada. Geralmente pré-adolescentes.
***
Solução: carros que vêm na contramão por pequenos trechos, para alcançar uma garagem ou uma esquina. Sempre apressados e andando junto ao meio-fio. Em ruas de pouco movimento. Nas mais trafegadas o trecho é percorrido de ré.
***
Beijo: uma mãe que todos os dias, no mesmo horário, beija os filhos na saída para a escola. Eles para um lado, uniformes e mochilas em disparada. Ela para o outro, para a igreja.
***
Visão: gato preto que passa rápido à frente de um carro à noite. Olhos que brilham como faróis.
***
Cortada: pessoas a pé que ultrapassam pela direita e subitamente cortam a sua frente para entrar em uma loja, por exemplo.
***
Roleta-russa: pessoas que saem das loja e atravessam a calçada em direção ao meio-fio, sem olhar.
***
Anche lui scrive bene. Molta sensibilità.