Ainda é cedo para fazer uma lista dos grandes romances do século XXI. O século XX no entanto já viveu seu tempo e assim me arrisco a redigir aqui a minha lista dos ‘livros do século’, limitada aos dez que realmente li.
Começo com ‘A montanha Mágica’, romance de ideias onde Thomas Mann descreve a evolução do caráter de um jovem que a partir de uma visita a um sanatório que julgava ser de três semanas acaba lá vivendo por sete anos. Retorna à vida comum e perde-se nas trincheiras da 1aGuerra – à qual não sabemos se sobreviveu.
O sanatório de Hans Castorp, personagem central de ‘A Montanha Mágica’.
Depois temos Vasily Grossman com ‘Vida e Destino’. Grossman foi correspondente de guerra e teve experiência pessoal da batalha de Stalingrado que conta em detalhes vívidos, mas estende sua obra-prima à descrição da vida na Rússia soviética e ao destino de uma família impactada pela guerra.
Escrito no limiar do século XX pelo americano quase inglês Henry James, ‘A taça de Ouro’ conta a história de dois casamentos. Frases longas e convolutas; livro difícil de ler, mas a sutileza com a qual as relações humanas são dissecadas é poucas vezes alcançada. Passando à Itália encontramos Italo Svevo, pseudônimo de Ettore Schmitz, que escreveu ‘A consciência de Zeno’. Essa personagem é um burguês, às vezes engraçado e irônico, em outras ansioso e cheio de hesitações; passa seu tempo analisando-se e acaba consultando um psiquiatra. O romance é um dos primeiros escritos sob a influência das ideias de Freud; aliás, ele foi escrito como se fosse a autobiografia que o psiquiatra receitara a Zeno como possível cura para sua neurose. Daqui vamos à Inglaterra com Virginia Woolf, e seu ‘As Ondas’, para mim seu melhor romance, que segue seis personagens da infância à meia-idade. Eles comparecem como narradores que relembram um sexto companheiro que morreu em terras distantes. Virginia consegue recriar os pensamentos e emoções que atravessam nossa consciência em fluxo incessante. Marcante é a descrição do passar do dia, desde a manhã até a noite – clara metáfora do passar da vida – com as sombras subindo lentamente pela natureza e pelas coisas.
Três escritores, escrevendo sobre a vida de famílias conseguem extrapolar a trama para o contexto social da época: um é Tommaso di Lampedusa com ‘O Leopardo’, romance ambientado durante as agitações da unificação italiana. Centrado em uma família aristocrática – como a do autor – família que com o mudar dos ventos da política assiste à emergência de uma burguesia ávida para tomar seu lugar. Ficou famosa uma linha do romance: “se queremos que tudo permaneça como está é preciso que tudo mude”. O outro é o austríaco Arthur Schnitzler, que em 1908 escreveu ‘O Caminho para a Liberdade’, uma história simples, de sedução e abandono de uma jovem pequeno-burguesa por um aristocrata, trama principal à qual se entrelaçam personagens e eventos da sociedade vienense do fim do século XIX – a verdadeira protagonista – que por sua incompatibilidade com os novos tempos caminha para a sua dissolução.
O terceiro escritor é novamente Thomas Mann, com ‘Os Buddenbrooks’. O sub-título: ‘A história de uma família’, expressa bem o tema principal que mantém paralelos com ‘O Caminho’ de Schnitzler. O romance de Thomas Mann retrata com fina psicologia uma rica família de comerciantes de Hamburgo, que lentamente se desagrega, incapaz de realizar a transição entre uma sólida e protegida vida burguesa e os novos valores preanunciados pelo século XX que se aproxima. Como disse seu tradutor do alemão para o inglês: “o livro é um monumento a uma tradição cultural desaparecida”.
E chegamos ao décimo romance do século XX, o muito falado e pouco lido ‘Em Busca do Tempo Perdido’. Tempos atrás meu post “Uma catedral feita de palavras’ tratou um pouco de Proust e seu livro. Aqui gostaria de falar não tanto disso, mas do que outros escrevem sobre essas 5000 páginas, traduzidas em uma multidão de línguas.
Os cuidados do escritor: uma das 5000 páginas
Por exemplo, temos George Painter que em 1959 escreveu uma biografia de Proust, provavelmente a melhor fonte para entender a gênese do grande romance. De Painter ficamos sabendo que as personagens do livro foram tiradas da vida real, não de uma só pessoa, mas de várias. De outro tom é um projeto de Harold Pinter, autor inglês de peças de teatro, que pretendia fazer um filme. Ele escreveu os diálogos, mas deixou inacabado seu belíssimo projeto. Outro escritor, Samuel Beckett, em 1930 nos deu um pequeno ensaio intitulado simplesmente ‘Proust’, já prefigurando a economia de palavras com que ele mesmo, Beckett, iria construir suas peças teatrais, tipo ‘Esperando Godot’ – muito assistida e pouco entendida. Pois bem, este ensaio, já transformado em pequeno livro, foi seu primeiro sucesso literário.
Em 1997 Alain de Botton escreveu um livro leve, destinado ao grande público: ‘Como Proust Pode Mudar Sua Vida’. O autor é um suíço educado na Inglaterra, que produz (é a palavra certa, escreve muito!) livros inteligentes e divertidos, como por exemplo, ‘Desejo de Status’ (que recomendo aos emergentes, para frear um pouco sua incontida fome de ostentação), ‘Religião para Ateus’, ‘Como Pensar Mais Sobre Sexo’ (mais ainda!), ‘Consolações da Filosofia’ e outros – tem para todos os gostos. Pois bem, da leitura de ‘A Busca”, Alain de Botton retira e compartilha conosco uma série de ensinamentos: em primeiro lugar, não se deixar intimidar por Proust (difícil isso!). Depois, tirar proveito de suas infelicidades (a mãe que não lhe deu boa noite quando criança; Albertine, ciúme e abandono; a descoberta de sua homossexualidade; o pessimismo romântico: “os que amam e os que são felizes são pessoas diferentes”) e delas aprender a defletir nossas aflições. Proust também aconselha a não ler muitos livros e a não lhes atribuir uma função demasiado importante – a leitura deve ser apenas uma iniciação. Dele mesmo é a frase: “a leitura está no limiar da vida espiritual; pode nos introduzir a ela; não a constitui”. Interessante notar que essa advertência está num livrinho intitulado ´La lecture’ (ainda não traduzido na nossa língua) em que Proust escreve maravilhas sobre o hábito da leitura.
Também foram produzidos filmes sobre ‘A Busca’ – pelo menos cinco, e histórias em quadrinhos também. Esses meios visuais ou confirmam ou não as imagens que, como leitores fizemos das personagens.
Pairando sobre toda a imensa obra e o que se escreve sobre ela, está o famosíssimo conceito da “memória involuntária”, um processo via o qual, a partir de um evento acidental, em uma fração de segundos pessoas e coisas do passado são trazidos do inconsciente ao consciente. Essa recriação de experiências adormecidas ocorre de maneira muito mais perfeita e cristalina do que se tivesse sido procurada intencionalmente. O mais conhecido e estudado evento ativador da memória involuntária é o mergulho na xícara de chá de um pequeno biscoito conhecido como “madalena”. Mas não é o único: há a sensação de pisar no pavimento irregular do pátio da mansão dos Guermantes, o barulho de uma colher batendo num prato e muitos outros eventos menos célebres.
Minha recriação das “madalenas”, prestes a serem banhadas na xícara de chá
E por fim, ter sempre em mente que a decisão de ler a ‘Busca’ deve ser bem pensada, para não frustrar-se por abandona-la antes da página, digamos 100. Importantíssima é a questão tempo – pensar que pelo menos durante um ano, um ano e meio, não será possível ler nenhum outro livro, e não adianta olhar com interesse os novos títulos em uma livraria ou lembrar-se daquele clássico que se quer reler. Preparar-se a enfrentar longuíssimas descrições de jardins, flores e catedrais (mas que podem ser pulados sem excessivo sentimento de culpa). Recomendo também de render-se à evidência que é quase impossível ler Proust e tocar a vida para frente como se nada tivesse acontecido.
Virginia Woolf hesitou muito antes de abrir ‘A Busca’, que ela comparou a um pântano que a poderia sugar, a si e à sua capacidade de escrever. Mas a enfrentou e escreveu, por exemplo, o proustiano ‘Passeio ao Farol’. Mas enfim, ela era Virginia Woolf