Ao longo da primeira metade do século XX os automóveis americanos evoluíram de joias mecânicas exclusivas, sóbrias e aristocráticas para produtos ridiculamente grandes e potentes, recobertos de cromados e formas extravagantes, em resposta ao gosto kirsch de uma classe média consumista, ávida para evidenciar sua afluência. Gasolina barata, grandes distâncias casa-trabalho e cultura corporativa voltada unicamente ao lucro incentivaram esse estado de coisas, até sobrevir o choque do petróleo de 1973.
Pensei ser possível teorizar um pouco sobre a evolução social de um povo observando as mudanças de sua Indústria automotiva. O estilo dos automóveis, que varia no tempo e do espaço pode ser tomado como uma linguagem, que como se sabe é influenciada pela sociedade e esta por aquela em trocas mútuas.
Assim, embora haja muitas variáveis – técnicas e econômicas – a evolução do estilo dos automóveis é resultado de estudos de marketing que seguem as preferência do consumidor. Preferências que por sua vez são função do seu status quo social e econômico.
Seguir e comunicar a evolução estilística de um objeto qualquer requer imagens, mas para não atravancar o texto com uma profusão de fotos recorri a links, procurando também mantê-los ao mínimo.
Os Estados Unidos são a terra do automóvel (embora como veículo prático ele tivesse nascido na Alemanha em 1985, com Carl Benz) portanto comecemos por ali.
Automóveis da América no pré-IIa Guerra
Três condições se combinaram para moldar a indústria automobilística dos anos ´20 e ´30 do século passado: (i) a existência de grandes fortunas; (ii) o automóvel iniciou a mostrar sua confiabilidade e praticidade; (iii) a descoberta que tal como joias, mansões e cavalos de raça o automóvel era um excelente meio de ostentar riqueza. Além dos Duesemberg e Cord mostrados abaixo os EUA contavam com mais hiper luxuosos, como o Packard Eight 1935, o Auburn 8-101 de 1935, o Cadillac Pheaton 1931, este com 16 cilindros em V! – e muitos outros.

Duesemberg J, de 1931, e Cord 810 de 1936. O primeiro tinha um motor de 8 cilindros em linha e potência igual de 209 HP (estimada), enquanto o Cord utilizava motor V8 com 136 HP e tração dianteira – algo inédito na época.
A existência (e sobrevivência) de modelos caríssimos (US$ 15 – 20 mil, correspondendo a US$ 200 – 250 mil de hoje) é difícil de entender, se lembrarmos que eles atravessam os anos da grande recessão de 1929. Há algumas explicações para isso: (i) as grandes fortunas não foram imediatamente afetadas, especialmente o “old money”, não diretamente relacionado com a ciranda financeira; (ii) a necessidade psicológica de mostrar-se intocado pelo desastre; (iii) uma atitude quase autodestrutiva – ‘vamos aproveitar antes que tudo se acabe’. Os EU iniciam a se recuperar da crise em 1933, mas é preciso esperar até as portas da Segunda Guerra Mundial para alcançar os níveis pré-1929.
Apesar de hiper-luxuosos os carros da elite era conservadores em design e mecânica: em geral o formato era o de cristaleira (exceto o Cord) e o motor era sempre gigantesco – por exemplo, o 8 em linha do Duesemberg tinha 6889 cm3 ou 6,9 litros. Para efeito de comparação um Toyota Corolla 2025 tem 1,8 litros, um caminhão Mercedes Benz Acello 1417 para 14 toneladas tem 4,8 litros. Exceções ao estilo são raríssimas, e a Chrysler tentou inovar com uma carroceria revolucionária meio Art Nouveau – o Chrysler Airflow, que foi construído de 1934 a 1937. Esse carro foi testado em túnel de vento, tinha um motor de 8 cilindros, 5,3 litros e dispunha de freios hidráulicos enquanto a maioria ainda valia-se de frenagem mecânica. Notar que o Airflow era contemporâneo aos carros acima citados. Entretanto, vendeu muito pouco – o público não apreciava novidades que não compreendia. Mais tarde isso se repetiu com o Tucker, auto revolucionário (pelos padrões USA) com freios a disco, suspensão independente e – pasmem – motor traseiro.

Chrysler Airflow 1934 e Tucker 1948. Deste apenas 16 unidades foram produzidas e nunca foi comercializado
Automóveis da América no pós-IIa Guerra – anos ´50
Os anos cinquenta são considerados os ‘anos de ouro’ dos Estados Unidos; como se sabe, retomada industrial, aumento do crédito ao consumidor, baixo desemprego e generosos subsídios aos milhões de veteranos da IIa Guerra, foram os fatores constituintes da sociedade de consumo da época. O americano médio passou a viver na periferia das grandes cidades, em subúrbios parecidos com nossos condomínios fechados, lugares que sabidamente incentivam o conformismo o conservadorismo e o exibicionismo – daí o característico dito americano – “keep up with the Joneses”. A família americana só reencontra o automóvel nos anos cinquenta (durante a guerra as empresas automobilísticas fabricavam caminhões, tanques e armamentos) e dele se enamora. Três suas principais motivações de compra: (i) grandes distâncias dos subúrbios aos locais de trabalho; (ii) fazer bonito com o vizinho – os Joneses; (iii) e logicamente, dinheiro no bolso e crédito fácil.
É essa a sociedade que Detroit passa a alimentar com veículos cada vez mais irracionais, fiando-se no imperativo psicológico que diz que ‘os objetos são objetos de desejo, não de uso’. Se o automóvel dos anos ´20 exibia roupagem sóbria, aristocrática, própria para uma elite habituada ao luxo – mansões, iates, viagens, etc. o automóvel dos anos ´50 destinava-se à uma classe média, moradora de quase indistinguíveis subúrbios, extremamente homogênea em moda, ideias e aspirações e principalmente desprovida de gosto estético, portanto fácil presa de manipulações marqueteiras. E a indústria o que faz? Lhe empurra monstros enormes, extremamente cafonas, kirsch até, e superficialmente chamativos. São carros que utilizam motores V8 de tamanhos próximos aos 5 ou 6 litros, obrigatórios para empurrar as enormes e pesadas carrocerias em voga; em média cada carro trazia cerca de 25 a 40 kg de cromados com nenhuma função prática. A seguir, dois exemplos de: (i) luxo extremo; (ii) carro destinado à classe média – e mesmo este exibe formas exageradas:
– Cadillac Fleetwood 1959: motor 6,4 litros, potência 345 HP, 6,22 m de comprimento, 2,4 toneladas de peso.
– Chevrolet Bel Air 1959: 3,9 litros, 135 HP, 5,36 m, 1,68 toneladas.

Em cima: Cadillac Fleetwood 1959 – a era do espaço adaptada aos carros. Em baixo: Chevrolet Impala 1959 – popular mas igualmente exótico em linhas, com 1,46 Mi de unidades vendidas no ano.
Em 1955 a Chrysler lança o Dodge ‘La Femme’, modelo destinado ao público feminino; cores róseas e pastel, acessórios como capas, bolsas, chapéus, todos da cor do carro. Isso dá uma ideia da posição da mulher na sociedade da época! Resta o consolo de o carro ter sido um fracasso de vendas.
Enquanto pôde a Indústria dedicou-se ao embelezamento superficial de seus produtos, à mudança anual de estilo (também superficial) que provoca insatisfação com o que se tem, enfim à obsolescência dinâmica. Tudo isso, e mais gasolina custando cerca de 7 centavos de dólar / litro, resultou na venda de 6,6 Mi de carros em 1950. Durante a década a questão ‘segurança’ esteve totalmente ausente: painéis internos cheios de botões salientes, para-choques dianteiros desenhados para aleijar pedestres, estabilidade sofrível, etc., sem que o público se importasse.
A recessão de 1958, acendeu luzes de alarme, mas Detroit continuou produzindo mastodontes e esportivos cada vez mais potentes. Foi preciso o choque do petróleo de 1973, com a gasolina a 14 centavos / litro em 1975 – para confundir a métrica americana do sucesso: o dinheiro – materializado em ter o carro mais potente e reluzente da vizinhança. A Indústria passou a projetar carros menores – os chamados compactos – mas habituada aos mastodontes saiu-se com coisas tipo Ford Pinto (em batidas atuava como uma garrafa Molotov), Chevrolet Vega (mil problemas) e Corvair (absolutamente instável). A baixa qualidade desse compactos, associada a problemas financeiros de Detroit abriu as portas à importação: Volkswagen, Toyota e Nissan inundaram o mercado, e no final da década de ´70 os japoneses representavam 25% da frota.
Em suma, a cultura corporativa da Indústria automotiva dos Estados Unidos fixou-se em dar precedência a estilo sobre engenharia, e o resultado mostra o equívoco dessa cultura: 7,7 Mi de autos importados (US$ 217 Bi) versus 2,5 Mi de exportados (US$ 59 Bi) em 2024. Um déficit de 158 Bi por ouvir a voz de consumidores movidos por aparências.
