No meu colégio interno – longínquo no tempo e saudoso na memória – a frase de (ou atribuída a) Lavoisier: “na natureza nada se perde tudo se transforma” era por nós frequentemente repetida em conexão com a comida do refeitório – por exemplo, a sopa seria um derivado da água de lavagem dos pratos, o bolinho de carne um subproduto das sobras de ontem, etc. etc. Nas aulas de química, a termodinâmica nos esclareceu Lavoisier e o mau aspecto da comida; aprendemos que a Primeira Lei da Termo diz: A energia total de um sistema fechado permanece constante embora possa transformar sua forma em outra. Em outras palavras, uma forma de energia pode se converter em outra, mas não pode ser criada nem destruída. Portanto, sempre que desaparece uma classe de energia deve aparecer outra forma de energia em quantidade exatamente equivalente. O ‘sistema fechado’ mencionado na definição pode ser de qualquer tamanho e natureza, inclusive o universo inteiro.
A 1a Lei é simples; a 2a é complicada, mas não faz mal, não nos interessa aqui. Aliás ela tem um quê de sinistro pois, pelo menos teoricamente, entre outras coisas prediz e explica a possível morte do universo e consequentemente a da raça humana.
Lavoisier no seu laboratório, em doce companhia.
O estudo da História não deve ser empreendido com os olhos de hoje, pois coisas e pessoas vão parecer estranhas e incompreensíveis. Por exemplo, lendo História da ciência os cientistas do século XIX nos aparecem algo ingênuos – embasbacados com coisas que hoje qualquer estudante de 2o grau, ou qualquer usuário de refeitório de internatos conhece. No entanto, é interessante notar que não afixamos essa qualificação de ingênuo aos sábios da antiguidade – por exemplo, reverenciamos Demócrito que sem instrumento algum ensinou que a matéria é composta de átomos, entidades indivisíveis e com espaço entre eles.
Recentemente me enviaram um estranho artigo, que me fez voltar ao século XIX e à 1a Lei. Ele é de 1887, intitula-se A energia potencial do alimento e seu autor é um tal de W.O. Atwater. Em resumo, o objetivo do trabalho é a quantificação da energia contida em diferentes alimentos e seus resultados são mostrados em uma Tabela ‘alimento – calorias’. Surpreendentemente os valores dessa tabela estão muito próximos dos valores atuais, o que mostra a seriedade e competência dos cientistas daquele tempo. A fundamentação do trabalho é a 1a Lei da termodinâmica, discutida segundo vários pontos de vista e não apenas os científicos. De fato, o que chama a atenção não é só a qualidade dos resultados, mas principalmente o estilo com que o artigo foi escrito, típico de um tempo passado em que ciência e humanidades andavam juntas. É um estilo literário, pesado e rebuscado, cheio de divagações, mas que tem a vantagem de transmitir as emoções do cientista enquanto trabalha e matuta sobre o universo e suas leis. Enfim, embora o objetivo do dito artigo seja bem claro e direto, ou seja, o cálculo da energia contida nos alimentos, o modo de chegar lá difere totalmente do modo seco e econômico dos trabalhos científicos atuais.
Parte da primeira página do artigo
Logo no início Atwater comenta que no universo existem apenas duas coisas: energia e matéria. E também que o conhecimento acumulado até então mostra que a matéria é uma manifestação da energia (atenção – voltarei a isso no final!). Essa energia preenche o universo e nos chega via a luz de estrelas tão distantes, que embora rapidíssima essa luz emprega diversos anos para chegar até nós. Uma grande reserva de energia foi acumulada no Sol, que a transfere à terra sob forma de luz e calor. Essa energia é armazenada aqui durante eras geológicas no carvão e petróleo subterrâneos, assim como nas plantas e nos animais que as consomem e consomem outros animais, até que passa a fazer parte do nosso alimento.
É fácil entender que carvão e petróleo, quando queimados fornecem calor e energia na exata quantidade que lhe foi fornecida pelo sol; a mesma transformação ocorre na passagem para a nosso organismo das proteínas, gorduras e carboidratos dos alimentos. É a energia desses componentes do alimento que gera o calor de nosso corpo (os 37 graus do termômetro) e a energia que dispendemos para andar, trabalhar, pensar, etc. Parte desta energia pode assumir a forma de eletricidade – sabe-se que impulsos elétricos percorrem nosso cérebro e comandam nossos músculos. Em certos insetos certa quantidade da energia absorvida de seu alimento é transformada em radiação visível: dela se servem vagalumes e alguns peixes das profundezas.
O autor continua expressando sua admiração pelo fenômeno da transmutação de um tipo de energia em outra, todas porém com a mesma fonte: o Sol. E discorre sobre a energia contida no carvão, que se transforma na energia expansiva do vapor que movimenta navios e locomotivas. Semelhante transformação ocorre no petróleo, que quando elaborado em gasolina movimenta o automóvel.
Esquema de um motor a vapor, aplicação da 1a Lei da termodinâmica: calor da combustão do carvão transformado em movimento rotativo de um eixo que por sua vez executa um trabalho; por exemplo, enrolando um fio em torno de si levanta um peso. Energia térmica transformada em energia mecânica.
Até que finalmente o artigo chegue no seu tema central há uma impressionante multiplicação de divagações, o que hoje é impensável em um artigo científico. Por exemplo, pensando nas catedrais medievais ele vê a energia contida nas plantas passar aos alimentos e daí aos músculos dos trabalhadores e por fim ser armazenada como energia potencial nos tijolos das paredes e torres. Em seguida o tom se afasta mais e mais do seu objetivo central, expandindo-se até considerar a energia – “infinita e eterna” – como uma das formas de Deus, misturando divagações desse tipo com trechos de poetas ultrarromânticos. E novamente aparece o conceito da identidade matéria/energia expresso na frase: “as coisas que chamamos matéria são apenas formas da ação da energia, e esta energia é Deus, imanente (significando algo que está presente ou inerente a algo, sem provir de uma fonte externa) no universo.
Dois são os comentários que posso fazer sobre esse artigo. O primeiro é sobre o estilo: minha estranheza inicial desaparece se eu adotar um olhar sintonizado com a História: o artigo vem de um tempo anterior à separação dos conhecimentos científico e humanístico. Mas se hoje parece bem estranho mesclar matemática e física com poesia, filosofia e religião, por outro lado, assistimos a um divórcio entre essas áreas do conhecimento, de modo que a comunicação entre elas é quase nula. O engenheiro e o cientista não tem nenhum interesse em literatura e o literato ignora a ciência; são como dois rios que desaguam em mares diferentes – nunca se encontram para uma conversa.
O segundo comentário remete à frase: matéria é uma manifestação da energia, e também à outra com similar sentido: as coisas que chamamos matéria são apenas formas da ação da energia, etc.Elas parecem aproximar-se de uma das grandes descobertas da Teoria da Relatividade – a equivalência entre energia e massa. São somente frases, mas parecem descrever em palavras a famosa equação de Einstein: E = m c2, onde E = energia, m = massa e c = velocidade da luz, que é 300 mil quilômetros por segundo. Não é preciso muita matemática para ver que quando multiplicada por c ao quadrado (que em km/segundo equivale a 9 seguido de 10 zeros), uma pequena massa equivale a uma enorme quantidade de energia. Essa equação está na base do funcionamento das usinas nucleares e, infelizmente, da bomba atômica. Aquela lançada sobre Hiroshima (apelidada com supremo mau gosto de ‘Little boy’) continha 64 kg de urânio, dos quais apenas 1 kg realmente “funcionou”. Esse punhado de matéria gerou uma energia entre 13 e 15 mil toneladas de dinamite (15 mil kT) que em segundos aniquilou entre 70 e 80 mil pessoas. Queimaduras e radiação elevaram ao longo dos anos esses números a 140 mil e talvez 200 mil. Uma infeliz consequência de uma bela equação.
Será que o cientista W.O. Atwater, ainda em 1887 conseguiu entrever confusamente o que 18 anos depois Einstein desenvolveu com exatidão: a famosa equação que é parte da Teoria da Relatividade? Tenho certeza porém que ele nunca imaginaria o que o Homem seria capaz de fazer com o fenômeno da conversão da massa em energia, algo bem mais terrível que a transformação em sopa da água de lavagem dos pratos.
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