Todos ouvimos falar do dodo ou dodô (a mim é mais simpático o nome dodo) – nunca o vimos nem em fotografia, já que não mais existe, extinto desde o início do século XVII. Segundo a Wikipedia, foi avistado pela primeira vez em 1598 por marinheiros holandeses que aportaram em Mauritius, ilha então desabitada, a pouco menos de mil km a leste de Madagascar.
Em menos de cem anos daquela data não havia um só dodo vivo na ilha, que era seu único habitat na Terra. Tal como muitas vezes foi feito com indígenas pelo novo mundo afora, alguns pássaros foram enviados à Europa mas logo morreram.
Talvez eu tenha utilizado indevidamente a palavra ‘pássaro’; o bicho não conseguia voar com suas micro asas, seu importante peso e desfavorável aerodinâmica já que parecia um peru de uns dez kg. Seu canto era semelhante ao dos pombos a cuja família pertencia, classificado que foi como columbidae.
Mas daí chegou o homem na forma de famintos marinheiros holandeses – confiante que não havia maldade em seu mundo o dodo deixava que esse bípede estranho se aproximasse e lhe torcesse o pescoço. Ainda, animais domésticos trazidos pelo homem – porcos, ratos, macacos – também contribuíram para a extinção desse ser extravagante. A lição a tirar é: a evolução nos fornece o que precisamos para sobreviver no meio que é nosso. A ilha fornecia ao Dodo alimento fácil, portanto não necessitava saber lutar contra concorrentes e a evolução não o equipou com o pecado capital da agressividade. Esta inexistia em seus genes. Ainda, a ausência de predadores – principalmente os humanos – lhe conservou essa mansuetude e sua vida devia ser tranquila, sem sobressaltos e medos.
Vamos ao presente e esqueçamos o dodo, por enquanto. Um aspecto dos dias de hoje é a pobreza absoluta concentrando-se nas grandes cidades; apesar de estar diminuindo no mundo, torna-se cada ano mais visível mesmo em países ricos. Por exemplo, na cidade de São Paulo segundo a OBPopRua da Univ. Fed. de Minas Gerais, 80 mil pessoas estão em situação de rua (junho 2024). É muita coisa! Sabe-se também que 27,4% da população do país vive com menos de 2,25 USD/dia, (R$ 12/dia) – 1/3 de nós classifica-se como pobre. Portanto 2/3 de nós não classifica-se como pobre. Note que eu falo nós, por que é uma questão de sorte ou de azar ter nascido no 1/3 ou no 2/3 – em outras palavras, eu poderia ser aquela pessoa que está dormindo nos degraus da Catedral da Sé.
Um lembrete muito a propósito para certas pessoas
Mas parece que boa parte dos 2/3 não pensa na aleatoriedade da nossa condição de nascimento e ao pobre dirige apenas rejeição, medo e desprezo. Recentemente tive que assistir a uma cena em que, após negar a esmola pedida, a pessoa com quem eu estava chama de volta o pedinte para ridicularizá-lo e humilhá-lo. A mesma pessoa – típico “cidadão de bem” – admira-se de o absolutamente pobre não conseguir reagir “procurar um emprego, oferecer-se para um trabalho, mesmo que seja quebrar pedras”. E escamoteia seu pão durismo dizendo que com a esmola “ele vai comprar droga”. E se assim fosse?
Manifestação típica de falso e agressivo moralismo
Minha aversão a esses tipos, completamente desprovidos de caridade e empatia, auto definidos como cidadãos de bem mas simplesmente abjetos, me despertou a vontade de saber como se forma sua personalidade, como se origina sua quase sub-humanidade.
Encontrei uma interessante intepretação desse problema no livro de Adela Cortina, Aporofobia, um desafio para a democracia, Ed. Contracorrente (2022). Adela é professora emérita de Filosofia Moral e Política na Universidade de Valência e seu trabalho centra-se sobre as origens da rejeição ao pobre, sentimento que intitula seu livro: aporo = pobre; fobia = aversão, nome que entendi ter sido criado por ela.
São oito capítulos e o quarto, intitulado “Nosso cérebro é aporófobo” é o mais relevante para o que nos interessa aqui. A autora inicia perguntando por que nas sociedades o que é desejado: – democracia plena, uma economia ética que crie e distribua riqueza, uma sociedade pluralista e com justiça social – é tão diferente do mundo real, onde a aporofobia, o racismo e a xenofobia agridem os fracos e minorias dessa sociedade. Enfim; por que esse abismo entre o declarado e o realizado? Por que essa assimetria, essa incapacidade de fazer o que queremos ou de ser como queríamos ser, que convencionou-se chamar de ‘fraqueza moral’? O livro responde com duas hipóteses: (i) religiosa – o pecado original (sic) que na versão filosófica secularizada vira a ‘doutrina do mal radical’, que é a tendência de escolhermos o egoísmo em vez de o dever moral. A fraqueza moral seria portanto inata, presente nos genes; (ii) a hipótese biológica – apoiada nos recentes desenvolvimentos das neurociências é a que professora Adela prefere. As modernas técnicas de imagem permitem espiar dentro do cérebro, uma estrutura neural que abriga o racional e o emocional, sistemas frequentemente em conflito.
Aqui devemos voltar um olhar à pré-história, reportando-nos à teoria da evolução, É sabido que na origem das relações sociais os homens viviam em pequenos grupos, que devido à escassez de alimentos e à presença constante de predadores desenvolveram extrema solidariedade interna e receio de estranhos.
Hoje os perigos são diferentes mas para sentimentos primários o cérebro mantém sua estrutura biológica antiga. Enfim, os códigos de conduta emocionais são produtos da evolução, que posteriormente podem ser modificados pela experiência, pela educação e pela cultura, que no cérebro inserem códigos racionais.
Essa seria a origem da xenofobia – o medo ao ‘outro’. É uma hipótese, mas atualmente obteve-se alguma comprovação experimental com a análise de neuroimagens. Por exemplo, foi observada maior atividade cerebral em regiões que se sabe serem associadas à emoção e cognição social.
O indivíduo xenófobo vive como que rodeado por círculos concêntricos e preocupa-se, interessa-se e interage com as pessoas, mas cada vez menos à medida que essas ocupam círculos mais afastados. Sob o ponto de vista de alguém que pertence ao 2/3 de que falamos acima, o pobre encontra-se no círculo mais afastado. Ele é o “outro”, invisível de tão afastado. E a criatividade de recursos para mantê-lo o mais afastado possível é surpreendentemente fértil. Abaixo dois exemplo dessa criatividade malsã.
Exemplos de arquitetura aporoforóbica: os baixos do Minhocão em São Paulo, e degraus na igreja catedral (!) de Campinas.
Do que foi dito pouco acima fica claro o parentesco entre xenofobia, racismo (uma subespécie da xenofobia) e aporofobia. Mas o pobre se distingue dos estrangeiros, e dos pertencentes a outras raças que não a branca (embora essas três condições podem muito bem se superpor) por uma particularidade: eles não tem poder de troca em um mundo baseado em atos de dar e receber. Essa reciprocidade origina-se nos genes, e o livro de Richard Dawkins, O gene egoísta (1976) explicou ao grande público sua importância nos comportamentos humano e animal. O título escolhido leva ao engano – e ele percebeu isso mais tarde – implicando que o gene seria sempre egoísta enquanto a intenção do livro vai na direção contrária.
Pouco antes escrevi que os homens pré-históricos, vivendo em pequenos grupos desenvolveram extrema solidariedade interna e receio a estranhos. Com isso os indivíduos obtém vantagem na luta pela vida, maior probabilidade de sobrevivência, portanto maior probabilidade de criar mais cópias de seus egoístas genes.
Porém, de um grande número de observações experimentais foi possível formular a hipótese que o gene podia adotar comportamento altruísta frente a outras comunidades próximas. Embora pareça contraproducente ao portador do gene – o indivíduo – tal comportamento implica em reciprocidade, que traduz-se em vantagem para ele, pois cooperar é muito mais rendoso do que obter vantagens iniciais por meio do conflito. Voltando ao exemplo dos círculos concêntricos, essa reciprocidade é intensa nos mais próximos, atenuando-se conforme nos afastamos do centro. Ela é seletiva. Esquematicamente é o que acontece com familiares e pessoas próximas e com pessoas mais afastadas. E os mais afastados de todos são os pobres, aqueles que não podem oferecer retorno a atitudes altruístas. Enfim, não podem cumprir seu lado do contrato.
Com isso se fecha a equação xenófobo = racista = aporofóbico.
Teria sido esse mundo em que vivemos o único projeto possível para a Terra, os humanos e os animais? Mas em outros projetos, com um mundo pré-histórico em fossem os dodos a viver entre perigos, escassez e predadores, e nós vivendo em pacífico Eden, talvez hoje a Terra fosse o planeta dos dodos. Nós seríamos seus servidores, ou quiçá uma coleção de fósseis, isto se os dodos se interessassem por espécies extintas.