Nesses dias terminei de ler “A Grande Transformação”, de Karl Polany. Minha interação com esse livro teve dois aspectos peculiares:
– entendi bem pouco; apenas iluminações aqui e ali – apesar disso entendi o ponto central do livro – as argumentações não;
– entendi muito bem o capítulo 4, e sobre ele consigo dizer alguma coisa.
Vamos primeiro situar o livro e o autor. Karl Polany (1886 – 1964) era um homem polivalente: economista, sociólogo, historiador e antropólogo. Ainda por cima era irmão de Michael Polany, um importante filósofo da ciência muito lido mesmo em nossos dias.
A Grande Transformação foi publicado em 1944 e a edição que eu li é de 2001, portanto o livro tem oitenta anos, mas foi reeditado até recentemente. Basicamente é um livro de história da economia e sabemos que livros envelhecem, especialmente os ligados a fatos políticos, que naturalmente mantém estreita interface com economia. No entanto, envelhecimento não foi a sina da “Transformação”, que tornou-se um clássico que tem muito a ensinar nos dias de hoje, especialmente a instituições internacionais como o Banco Mundial (BM), Fundo Monetário Internacional (FMI), etc.
Se por um lado não entendi muito do livro – acho que é preciso ter um MSc ou MA em economia! – pelo menos entendi sua mensagem central: o mercado auto- regulável não funciona. E ainda: são potencialmente danosos os efeitos de um capitalismo de mercado sem freios. Esse regime econômico e político é conhecido como “a mão invisível do mercado”, que segundo o teórico da economia Adam Smith faz com que o bem comum seja atingido a partir da soma dos interesses individuais e que para isso o mercado deve ser livre, sem interferência externa. Enfim, a economia de mercado auto regulável define-se como aquela dirigida pelos preços de mercado e por nada mais que os preços de mercado. E o que é esse mercado? – é o lugar onde se fazem trocas – seja a praça da aldeia ou a Bolsa de Valores – exemplos concreto e abstrato, respectivamente.
O conceito central de Polany chama-se “integração” (embeddedness). De quem em quem? – da economia em a sociedade, e o livro mostra como a auto- regulação do mercado concorre para separar uma da outra, fazendo com que invés da economia se subordinar à sociedade é esta que se subordina à economia. Com isso seres humanos e natureza passam a ser tratados como mercadorias (commodities), o que pode levar à destruição da sociedade e da natureza. Note que aqui Polany antecipa as preocupações com o meio ambiente, tão dominantes no século XXI.
Frase que resume o ponto central do pensamento de Polany
Mas fiquemos na parte que me toca: o capítulo 4, intitulado “Sociedades e Sistemas Econômicos”. Ali Polany examina a premissa de a consecução de lucro resultante de trocas mercadológicas ser inato na espécie humana, premissa essa que ele passa a destruir com argumentações de natureza histórica, sociológica e antropológica. Esse conceito de Homo Economicus vem do século XVIII – novamente Adam Smith – e assume que a raça humana é controlada em todas as suas atividades econômicas e também políticas, intelectuais, etc., pelo instinto de troca e isso seria observado mesmo em sociedades primitivas.
Segundo Polany esse conceito e falso; atividades econômicas de troca seriam apenas incidentais nessas sociedades, e ele recolhe uma quantidade de evidências, que resumo abaixo. Deve ser entendido que tais evidencias dizem respeito a sociedades pré-mercantis, e que estão embasadas em uma quantidade de estudos etnológicos e sociológicos, referenciados do livro.
1. Ganho, como motivação, não é natural no homem: na economia primitiva o desejo de auferir lucro, seja na produção como nas trocas – é totalmente ausente. Isso explica porque em sociedades tribais o indivíduo nunca passa fome, pois a comunidade – a menos que ocorra um desastre incluindo aí o contato com sociedades mais avançadas (como a nossa!) – cuida de seus membros. Portanto, não há motivo algum para que o indivíduo busque evoluir economicamente.
2. Pagamento por serviços prestados não é um traço natural no homem: em sociedades primitivas nunca foi observado esse tipo de retribuição, e isso continua válido mesmo na Idade Média. Nessa época os menestréis eram desprezados por aceitar pagamento em suas apresentações.
3. Não é natural no homem trabalhar o mínimo possível: ver adiante “prazer no trabalho” e “aprovação social”.
4. Os incentivos ao trabalho são reciprocidade, competição, prazer em realizar um trabalho bem feito e aprovação social: essas retribuições sociais e “emocionais” substituem a retribuição econômica.
Vejamos o significado de cada componente:
– Reciprocidade: nas sociedades em estudo é comum a troca mútua de presentes, costume que termina beneficiando por igual a todos. A desobediência a esse costume é considerada grave e conduz ao ostracismo social do infrator;
– Competição: querer fazer um trabalho melhor que o vizinho parece ser um traço comum em muitas tribos. Emulação, mas na ausência de ciúmes, transparece em diferentes rituais e cerimonias;
– Prazer no trabalho: foi observado que os Maori estendem seu cuidado a plantas, jardins, suas casas, etc. além do estritamente necessário. Enfim, considerações estéticas também norteiam suas atividades. Isso lembra o orgulho experimentado no trabalho artesanal, sentimento raro mas existente até hoje;
– Aprovação social: trabalho bem feito acresce o indivíduo em prestigio social; os moradores das ilhas Andaman consideram preguiça uma atitude antissocial.
5. A espécie humana permanece inalterada no tempo: uma vez entendidas e levadas em conta as diferenças culturais ligadas ao ambiente, tempo, clima, rituais religiosos e sociais, etc. percebe-se que essas remotas gentes são essencialmente iguais a nós. Ou seja, observa-se similaridade entre os homens em todos os estágios de seu desenvolvimento.
Certas emoções coletivas de natureza elementar são praticamente as mesmas para todos os seres humanos e explicam configurações semelhantes em sua existência social.
6. Em geral, sistemas econômicos estão integrados (embedded) nas relações sociais; assim, a distribuição de bens materiais está garantida por razões não-econômicas:
– A economia primitiva é uma construção social envolvendo diversas pessoas em um conjunto articulado;
– Nas sociedades primitivas a riqueza não é de natureza econômica, mas social pois integrada em um esforço coletivo de forças sociais;
– Os dois conceitos principais que governam o comportamento econômico são a reciprocidade e o armazenamento/redistribuição;
Na vida tribal o dar e receber são constantes – ao dar de hoje corresponde o receber de amanhã.
7. Estudos recentes mostram que a coleta de alimento não limita-se ao indivíduo e sua família apenas, mas estende-se à coletividade.
8. A reciprocidade e o armazenamento mais redistribuição são conceitos adotados tanto por pequenos grupos como por grandes e ricos impérios.
Basicamente, isso é o que o capítulo 4 transmite. A este ponto é útil repetir que tudo o que está acima é fruto de estudos de pesquisadores clássicos, em outras palavras, é baseado em fontes confiáveis.
Concluindo essa rápida visão do comportamento econômico humano antes do advento do mercantilismo, ou seja, antes do Homo Economicus, é interessante mencionar um exemplo bem próximo a nós: o indígena sul-americano. Em sua interação livre com a natureza (isto é, antes de contatados pela “civilização”) tribos não passam fome e não há posses materiais. Vendo fotos de suas aldeias percebe-se claramente que as ocas são coletivas e todas iguais, portanto não existe o sentimento de posse exclusiva ou a intenção de demonstrar riqueza superando o outro. O desenho das ocas é estritamente funcional e utiliza materiais doados pela natureza. É só com o contato com o dito civilizado que os indígenas passam a conhecer a propriedade, e nasce o consumismo: caminhonetes, relógios, computadores, armas de fogo para facilitar a caça, processos de acumulação que desembocam em vaidade e exibicionismo, etc. Essas porém não são características inatas mas adquiridas.
Aldeia Yaomani, tribo Moxihatetea, com 16 indivíduos. Roraima, a 1:30 hs de voo de Boa Vista. Foto: Guilherme Gnipper/Hutukara/Divulgação.
Outro exemplo, este vindo da Idade Média mostra a atitude daqueles tempos face ao trabalho – do meu post “Lá de oito séculos atrás a Inquisição nos conta…” retiro o seguinte trecho, bem ilustrativo:
Trabalham duro sempre que necessário, mas não seguem uma estrita disciplina. Não se negam a pausas mais ou menos longas, durante as quais conversam entre amigos, frequentemente à beira de um copo de vinho. Enfim, boa parte do tempo era consumido em siestas, fofocando sobre o mais e o menos ou em séria conversação sobre religião. Deduz-se daí que no Arège o trabalho não ocupava os níveis superiores da escala de valores. Os homens não desdenhavam de produzir para o mercado (concreto aqui), mas dedicavam-se principalmente à agricultura de subsistência. Não havia concorrência entre os domus e o empréstimo de ferramentas e implementos agrícolas era frequente.
Para terminar: como articula-se este capítulo 4 com o resto da “Transformação? Lembremos que o ponto central do pensamento de Polany é o conceito de “integração” do mercado com a sociedade e o que o liberalismo prega é um mercado autorregulado, independente da sociedade. Em oposição a isso Polany diz que essa separação vai contra a essência não-mercantilista do homem e o destrói, do mesmo modo como à natureza. Isso é o que expressa o capítulo 4 que assim se articula com os temas fundamentais do livro.