Lá de oito séculos atrás a Inquisição nos conta…

Todos concordam que olhar pelo buraco da fechadura é pouco recomendável. Porém, quando o que é observado são cenas protagonizadas por pessoas nascidas no final do século XIII num lugarejo do sul da França, o buraco da fechadura passa a ser um privilegiado instrumento de estudo da história social daquele lugar e daquela época.

O lugarejo é Montaillou, e o buraco da fechadura é o livro do mesmo nome escrito por Emmanuel Le Roy Ladurie, professor de História da Civilização no Collège de France. Sua intenção era produzir um texto acadêmico de antropologia cultural, mas o estilo acessível e vivo – tanto que visualizamos o lugar e nos afeiçoamos aos personagens – tornaram o livro um best-seller, que se lê como um romance.

Estamos no sul da França, quase sobre a divisa com a Espanha e Andorra, marcada pelos Pirineus orientais. O tal lugarejo tem 200 – 250 habitantes e se espalha aos pés do castelo da senhora do lugar, do qual hoje só restam três paredes. Então como hoje a região que engloba Montaillou e vários outras pequenas cidades e vilas denomina-se Ariège.

O castelo de Montaillou

A sequência de acontecimentos que trouxe até nós usos, costumes e religião de uma sociedade da idade média com detalhes e clareza impressionantes é a seguinte: (i) entre o final do século XIII e início do seguinte tomou pé na região uma doutrina religiosa chamada catarismo; (ii) por ser considerada uma heresia, alertou a Inquisição; (iii) esta foi presidida pelo bispo de Pamiers – cidadezinha próxima a Montaillou – Jaques Fournier, futuro Papa Benedito XII. Esse homem era extremamente meticuloso e pedante, eficientíssimo nos interrogatórios e que anotava absolutamente tudo.  

Foram 370 dias de trabalho, entre 1318 e 1325 com 578 interrogações envolvendo 114 pessoas, todas do Ariège; Montaillou entrou com 25 indiciados. As penas: prisão (muitos morreram lá), ter que carregar uma cruz amarela nas costas, sequestro dos bens, peregrinações e fogueira para cinco, um de Montaillou. Tortura, só em um caso.

Tudo foi registado em um grande volume (do qual perdeu-se uma parte) que o Bispo levava consigo por onde ia; encontra-se hoje na Biblioteca Vaticana onde Le Roy o estudou.

O Catarismo

O movimento é considerado herético pela Igreja Católica; nasceu na França do século XIII como reação à lassidão e vida escandalosa do clero. Foi violentamente reprimido e o território do Ariège foi palco de feroz repressão, sendo que em Montaillou o catarismo exalou seu último suspiro.

Cátaros acreditavam em um deus bom, que criou o mundo espiritual e um mau que criou a matéria, o mundo e nosso corpo. Tal como os espíritas, acreditam na reencarnação e seus ministros são homens que se abstém de sexo, são vegetarianos, e cruzam incessantemente o território para “ereticar”, ou seja ganhar adeptos ao catarismo. Denominam-se perfeitos, e logo vamos conhecer um deles bem de perto: Guilliame Bélibaste.  

Vida em Montaillou

Com exceção de duas ou três famílias, o povo é basicamente pobre. Os nobres um pouco menos; se não chegam a serem considerados ricos os padres o são, e como! – dando abundante argumento aos Cátaros e aos ateus.  Naturalmente, há diferentes níveis de pobreza, mas isso não impede que pobres, menos pobres e quase ricos se juntem nas noites ao redor do fogo para um bate-papo amigável, e isso inclui os nobres, representados principalmente pela dona do castelo, Beatrice de Planissoles, que pode ser vista fofocando e rindo como a última camponesa.

A atividade principal é agricultura e criação de ovelhas, mas também há uns poucos artesãos, sapateiros e alfaiates.

Os moradores das aldeias do Ariège tem como centro a casa, o domus, da qual a cozinha é a parte mais importante; lá tem lugar as reuniões e conversas no fim do dia. As casas mais ricas tem um sótão, muitas vezes usado como esconderijo pelos perfeitos quando aceitam hospitalidade nos vilarejos. No período 1300 – 1320 Montaillou contava com cerca de 40 domus.

As pessoas

O livro retrata de modo tão vivo coisas e pessoas, que – como no caso do ‘Em Busca do Tempo Perdido’ do qual já falei aqui estas tomam forma e, mais ainda, parecem olhar por cima do nosso ombro. Dentre os tipos mais marcantes de Montaillou temos o pastor Pierre Maury: filho de uma família de médias posses, eterno solteiro, generoso e alegre. Respeita a natureza e é gentil com seus semelhantes, tem uns trinta e poucos anos, é algo atarracado e de sorriso pronto.Com suas ovelhas ora está no Ariège, ora na Catalunha, chegando até as regiões de Lérida e Tarragona. Empresta seus serviços a quem lhe agrada e os deixa quando quer. Religioso, oscila entre o Catolicismo e o catarismo.Em 1324 foi aprisionado pela Inquisição; desta data desaparece das anotações do Bispo Fournier e nada mais sabemos dele.

Os pastores constituem um grupo a parte; são jovens, filhos de famílias pobres ou remediadas. São muito livres, fogem do casamento alegando não ter meios para isso e vivem em paz com os ‘sedentários’ (agricultores e artesãos) hospedando-se aqui e ali em casa de amigos e conhecidos. Correspondem aos nossos ‘freelancers’ atuais, sem patrão fixo.  

Outra figura marcante é o padre Pierre Clergue, membro da família mais rica e poderosa do vilarejo. O imagino baixinho, com um sorriso falso e olhos oblíquos, sempre em movimento atrás de suas maquinações e de rabos de saia. Embolsava o dízimo e num malabarismo retórico conseguiu convencer os seus fiéis que não era pecado dormir com primas de primeiro grau! Foi amante – entre dezenas – também da castelã Beatrice de Planissoles. Pierre Clergue também oscila: ora ajuda os Cátaros a fugir da Inquisição, ora os denuncia. A confissão para ele é uma maneira de avaliar candidatas potenciais à sua cama, esta que algumas vezes colocava atrás do altar. Morreu na prisão.

Beatrice de Planissoles foi casada por três vezes, mas teve tempo de arranjar grande número de amantes além do padre. Imagino-a alta e magra, logicamente loira de cabelos longos o que dificultava o despiolhamento, ocupação muito importante na Idade Média.        

Guillaume Belibaste era um perfeito, não muito levado a sério porém, (não como Pierre Authié, que coitado acabou na fogueira). Não era tão perfeito assim, pois uma vez, flagrado na cama com uma mocinha, muito bravo ele exclamou: “você está interrompendo um ato que agrada a Deus!”. Na verdade Belibaste tinha uma amante, mas dizia que era uma cobertura para que as autoridades acreditassem que era católico! Apesar de amigo de Pierre Maury se aproveitou bastante da sua generosidade. Belibaste foi denunciado e morreu na fogueira.  

O trabalho e o social

Como esperado a atividade principal em Montaillou é a agricultura. Trabalham duro sempre que necessário, mas não seguem uma estrita disciplina.  Não se negam a pausas mais ou menos longas, durante as quais conversam entre amigos, frequentemente à beira de um copo de vinho. Enfim, boa parte do tempo era consumido em siestas, fofocando sobre o mais e o menos ou em séria conversação sobre religião. Deduz-se daí que no Arège o trabalho não ocupava os níveis superiores da escala de valores. Os homens não desdenhavam de produzir para o mercado, mas dedicavam-se principalmente à agricultura de subsistência. Não havia concorrência entre os domus e o empréstimo de ferramentas e implementos agrícolas era frequente.

Os habitantes do Ariège viviam em uma época de efervescência religiosa polarizada em catarismo e catolicismo. Isso unido ao seu pendor para a discussão e o debate, incentivava longas conversas nas cozinhas ou na praça do vilarejo abordando, por exemplo, a Salvação, Deus e a viagem das almas após a morte.

De certo modo a vida sexual de Montaillou procedia com naturalidade– as jovens se casavam muito cedo, entre 13 e 15 anos; estupros eram raríssimos – dois talvez no período que nos concerne – e a moralidade ainda não tinha sido sufocada pelas estrituras das religiões Protestante e Católica pós-reforma. Assim, para os habitantes da região do Ariège o sexo era ainda uma agradável parte da vida, não uma fonte de stress e complexos.   

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O tsunami chamado Jaques Fournier passou, mas em 1348 a peste negra reduziu a 20 – 25 o número de domus de Montaillou, A vida continuou e hoje o antigo vilarejo ainda existe: as três paredes do castelo se alteiam numa extremidade do platô que domina o vale; pouco abaixo, em volta se distingue o que parecem ser fundações de casas, não sei de que época. Um pouco mais longe o novo Montaillou, algumas casas, a igreja, um pequeno museu   

Montaillou século XXI. À esquerda, no alto os restos do castelo

Os pitorescos nomes e sobrenomes do século XIV se perderam no tempo – mas Emmanuel Le Roy conta ter encontrado nos anos ‘70 um Clergue, na lista telefônica de Montaillou.

Eu tive mais sorte: conheci um casal idoso, modestíssimos sitiantes em Minas Gerais, sobrenome Pellissier – como os de hoje, os Pellissier do século XIV eram pobres: Bernard era casado com Alzais e tinham cinco filhos. Jean era pastor e Bernard filho arava o campo dos outros. Não sei se os que conheci realmente descendem dos de então, mas gosto de pensar que sim – o nome atravessou oito séculos inalterado pelo tempo, fixando-se no interior mineiro para exercer o mesmo modesto ofício pré-industrial.

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Emmanuel Le Roy Ladurie

Montaillou: Cátaros e Católicos numa Aldeia Occitana 1294 – 1324

Edições 70 (2008).

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