Heisemberg e companheiros

A motivação primeira do Projeto Manhattan era conseguir a bomba atômica para –  segundo os generais – “acabar com a guerra e salvar vidas americanas”. A motivação segunda mas não menos importante era o temor de que a Alemanha desenvolvesse a bomba antes que a América a tivesse. De fato, sabia-se que aquele país era um celeiro de cientistas e que contava com o grande Werner Heisemberg, o pai do Princípio da Incerteza. Além disso, o fenômeno físico que desagua na bomba A – a fissão nuclear – também veio de Berlim, com Otto Hann e Fritz Strassmann.

O princípio da incerteza diz que “existe um limite fundamental da precisão com que simultaneamente pode-se conhecer a posição e momento de uma partícula”. Fica a ressalva que o princípio tem validade para dimensões extremamente pequenas – um elétron, por exemplo. Além de ser um dos mais famosos aspectos da Mecânica Quântica sugere interpretações filosóficas – por exemplo, há quem diga que ela mostra que há limites do conhecimento humano sobre o universo, em outras palavras, todos os aspectos da realidade não conseguem ser explicados pela ciência.

O fenômeno da fissão – que tentei explicar no post anterior usando a metáfora da mesa de bilhar é a base da bomba-A e dos reatores nucleares – foi descoberto experimentalmente por Hahn e Strassmann, que porém precisaram de um terceiro para lhes explicar o que aconteceu, o que foi feito por Lisa Maitner (ex colaboradora de Hann), ajudada por seu sobrinho Otto Frisch. Pena que Hahn publicou sua descoberta sem colocar o nome da Lisa, nunca reconheceu seu importante papel e embolsou sozinho o Nobel de química em 1944.

Experimento de Otto Hahn, interpretado por Lisa Maitner : uranio natural (U235) impactado por um neutron (n) divide-se em bário (Ba) e criptônio (Kr). Os números 235, 139 e 95 são as massas dos átomos U, Ba e Kr. Desaparece uma unidade de massa: 235 – (139 + 95) = 1, que de acordo com a fórmula energia-massa de Einstein transforma-se em energia, 200 Mega eletroVolts, no caso.

Bem, com fissão, com Heisemberg e seus jovens discípulos era natural que a Alemanha tivesse seu programa nuclear. Pena que um grande número de físicos e engenheiros tivessem sido forçados a emigrar – a física era ‘ciência judia’ – justamente para os Estados Unidos onde foram “aspirados” para o Projeto Manhattan. Foi o espantalho da superioridade alemã que fez com que os recursos empregados no Projeto fossem tais que em 4 anos e meio a bomba estivesse pronta e lançada sobre o Japão.  

Começa assim a busca de informações sobre o estágio alcançado pela Alemanha e para isso foi formada a ‘Missão Alsos’, um grupo de militares e cientistas enviados à Europa no encalço das tropas aliadas. Essa missão foi revivida em livro pelo cientista chefe da missão, o físico S.A. Goudsmit (Alsos, H. Shuman, Inc. 1947). Infelizmente foi muito mal escrito: quase não há explicações técnicas sobre o que ia sendo encontrado, o tom é chauvinista e insiste em diminuir a competência dos cientistas alemães, especialmente Heisemberg. Na verdade, o objetivo maior da Missão era evitar que projetos e cientistas caíssem nas mãos dos russos.

Bem, uma visão geral sobre a bomba-A alemã pode ser dividida em quatro tópicos:

(i) Fatores ideológicos e organizacionais; (ii) Estado da engenharia e indústria alemãs; (iii) Escolhas tecnológicas; (iv) O contraditório Heisemberg.

– Fatores ideológicos e organizacionais: o mito da superioridade ariana difundiu-se para a ciência alemã”. Acontece que essa ciência judaica era o filão iniciado por Einstein, com seu E = mc2, expressão fundamental para a pesquisa nuclear. Os esforços alemães no nuclear iniciaram em 1939 e seguiram bastante modestamente, especialmente no que se refere a aplicações militares e isso por dois motivos: – primeiro, Hitler pensava que a guerra seria rápida e portanto não fazia sentido embarcar em um projeto de longo prazo; em segundo, time que está ganhando não se troca: foi dada importância secundária a P&D em nuclear com respeito a aviões a jato, bombas voadoras V1 e V2 e fantasiosos projetos de “armas finais”. Além disso os modestos esforços de pesquisa não estavam centralizados como nos EU, e havia competição entre os grupos para açambarcar uranio e água pesada, insumos muito escassos. Devemos lembrar que além do grupo de Heisemberg havia outros.

– Estado da Indústria alemã: uma arma nuclear é um produto da ciência mas também da engenharia e a indústria iniciou a sofrer sob os bombardeios aliados desde 1942, tendo que ser constantemente relocada frequentemente em subterrâneos. Ainda, uma série de sabotagens seguida por bombardeio aéreo da fábrica de água pesada da Norsk-Hydro (Noruega) e o afundamento de uma balsa transportando esse material limitaram sobremaneira a disponibilidade desse crucial insumo.

– Escolhas tecnológicas: basicamente a pesquisa alemã se dirigiu ao reator – a máquina nuclear – como a chamavam. O moderador era a tal água pesada, muito menos eficiente que o grafite utilizado por Fermi na Itália e pelos americanos. As facilidades para obtenção de urânio capaz de fissão – o U235 eram limitadíssimas, por isso os cientistas se interessaram no plutônio – o elemento 94 – que é obtido em reatores nucleares. Investigações posteriores mostraram que o urânio do reator não tinha sido exposto suficientemente aos nêutrons pois não havia (ou havia muito pouca) presença de produtos de fissão. Parece que foi a escassez de água pesada e não de urânio que restringiu o tamanho do reator impedindo a reação em cadeia.  

Cubo de urânio 238 do programa nuclear alemão (as cores são fantasiosas; o urânio natural é cinza prateado)

Não está claro o que a Alemanha pretendia com seu reator, que segundo os investigadores do Alsos era extremamente modesto em dimensões e tecnologia. Depois da guerra um desenho foi mostrado aos cientistas americanos que supuseram tratar-se mesmo de um reator – “mas eles pretendiam jogar um reator sobre as cidades inimigas?”, foi o comentário de um deles. Segundo os críticos do projeto alemão – Samuel Goudsmit à frente – seus cientistas não chegaram a perceber a diferença entre um reator e a bomba-A!     

 Reator experimental – Hagerlok – Abril 1945

 – O contraditório Heisemberg: havia dois Heisemberg – o primeiro era o homem que aparentemente manteve o programa nuclear alemão “sob controle”, o que significava que, embora dizendo que a bomba-A era viável, enfatizava as dificuldades, os longos tempos para consegui-la e fazia solicitações de recursos realmente modestas acabando por alienar Hitler e generais do projeto.  O segundo Heisemberg era o cientista que desejava a bomba-A, mas errou ao calcular a massa crítica de urânio necessária à fissão, ou aquele que ora dizia que seria de “algumas toneladas de urânio”, ora que alguns quilos “o tamanho de um abacaxi” seriam suficientes. Misteriosa foi, e continua sendo, a visita a (seu mestre) Niels Bohr na Dinamarca em meio à guerra. Uma linha interpretativa diz que através de Bohr Heisemberg queria informar que a Alemanha não teria a bomba, portanto a América (ainda não em guerra) não necessitaria desenvolver a sua. Outra linha supõe que a viagem tinha como objetivo cooptar Bohr para o desenvolvimento da bomba, o que este recusou veementemente. Também hipotiza-se que teria tentado obter informações sobre a pesquisa americana.

A construção do segundo Heisemberg deve-se a Gouldsmit, um homem ressentido como cientista (Heisemberg lhe era superior) e como pessoa (seus pais foram mortos em Auschwhitz), mas um retrato mais verdadeiro embora ainda contraditório do cientista alemão extrai-se das gravações obtidas em Farm Hall. Essa era uma casa de campo na Inglaterra onde os dez mais importantes cientistas nucleares alemães ficaram detidos durante seis meses finda a guerra. Foram bem tratados, mas a casa estava eriçada de microfones escondidos que registravam todas as conversas – que foram muitas.

A 6 de agosto os cientistas foram fulminados pela notícia de Hiroshima. A reação inicial de Heisemberg foi de descrença, depois falaram em enorme bomba convencional, por fim já convencidos do pior emitiram um comunicado no qual afirmavam ter deliberadamente retardado a construção da bomba, salientando que a partir de junho 1942 só tinham trabalhado no reator. Além de razões já comentadas aqui, razões éticas foram invocadas, razões estas que Goudsmit interpretou como um recurso para esconder a incompetência científica do líder do grupo e atacar os americanos, que não teriam seguido nenhuma lei moral. No entanto, em 14 de agosto Heisemberg deu uma aula magistral aos colegas sobre princípios e fundamentos da bomba e cálculo da massa crítica. Não podemos esquecer que isso foi a posteriori, quando notícias sobre a bomba americana flutuavam por ai.  

Até hoje Heisemberg é rodeado de incerteza, que não é a da Mecânica Quântica – essa é uma certeza!

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