Duas histórias

Que a literatura é filha de seu tempo e espaço é sabido. Outra variável (que em verdade é variável dependente das duas) é o contexto social, que pode assumir diferentes aspectos em cada intervalo do tempo dado e em cada porção do espaço em que desenrola-se a história.

Dois exemplos de literatura que nascem em tempos e lugares extremamente diferentes são seguintes romances curtos:

– anos ´50 – Cidade do México, Jack Kerouac – “Tristessa”;

– início do século XX – Viena, Arthur Schnitzler – “Senhorita Else”.

Ambos à frente de seu tempo no tema e no estilo

Tristessa é o nome de uma prostituta pela qual Jack, o protagonista da história se apaixona. Jack se confunde com seu criador, cuja verdadeira Tristessa existiu e se chamava Esperanza.

Jack Kerouac nasceu em 1922 no norte dos EU. Entre essa data e a de sua morte prematura (47 a) escreveu 21 livros dos quais 9 publicados post mortem. Poesias são muitas e não é à-toa que era amigo de Allen Ginsberg ícone da geração beat daqueles anos.

O livro que tornou Jack Kerouac famoso em todo o mundo, a bíblia dos marginalizados, dos contracorrente, dos então chamados beatniks é o “The Road – Na estrada”, que conta travessias da grande América dos anos ´40, viagens feitas por dois amigos que oscilavam entre estado etílico e visões construídas pela anfetamina e companheiras. É seu segundo livro, escrito em 1951.

Tristessa é um conto estendido; em minha edição tem 90 páginas. É seu sexto livro (1947), centrado em uma prostituta afundada na droga; a “ação” limita-se a idas e vindas através da Cidade do México para desencavar mais um tanto de morfina. Jack, El Indio e Big Bull são figuras que se movem em torno da bela Tristessa e de Cruz, esta aparentemente sua irmã, de idade indefinível e sempre doente. A casa de Tristessa é uma bagunça indescritível, Cruz dormindo num canto, um gatinho magro, uma galinha e um galo ciscando na cozinha e uma impassível e silenciosa pomba em cima do armário. Big Bull é um americano de sessenta anos, magro, grisalho e encurvado, caído ali no México por razões desconhecidas; é um casto protetor de Tristessa embora tenham feito amor uma vez, e imaginem que Bull só se dedica a essas coisas a cada 20 anos mais ou menos. O provedor de droga é El Indio e as quantidades habituais de Tristessa estão por volta das 10 gramas de morfina por mês. Jack segue a jovem por toda a cidade, a pé, de taxi – a prosa de Kerouac os acompanha em velocidade igual e arrasta o leitor como um rio em cheia, junto com troncos e galhos que remetem a budismo e a imagens como –” satisfação química – nascidos para morrer – esse pequeno evento recente chamado mundo – o céu é o Sutra de Diamante – asas de anjo enlameadas” – e por aí, viajando na construção e embate de palavras inesperadas.

Jack deixa o México, e depois de seis mil quilómetros e um ano volta. Encontra uma Tristessa decaída e doente – atravessam a cidade sob chuva em busca de droga, tropeçam em bandidos, malandros, prostitutas e drogados adormecidos, bares e cabarés iguais a cavernas vermelhas, um triste submundo. Tristessa está machucada, perto da morte, deitada na calçada.

Por fim é como se o tempo parasse na Cidade do México; um vórtice de palavras de Jack termina o livro sem que soubéssemos mais de Tristessa, de Cruz e de seus amigos.

Jack Kerouac escreveu essa história entre 1955-56, mas ela ecoa com urgência nos dias atuais. O drama dos destituídos, viciados ou não, jogados nas ruas das cidades e sujeitos à incompreensão, ódio e violência dos que se autodenominam “bem pensantes – cidadãos de bem”. A leitura de Tristessa lança um véu de piedade sobre aqueles seres demasiadamente frágeis, vítimas inocentes de um sistema de valores que enfatiza a agressividade, idolatra o dinheiro, o consumo, a “vitória social” a todas as custas, detesta a cultura e os diferentes e é incapaz de compaixão pelo sofrimento humano.

Senhorita Esle é também um conto estendido, e a história é muito simples. Estamos em 1901 (mas a publicação só veio em 1924, veremos por que), Esle tem 19 anos, é muito bonita, de boa família, despreocupada e independente. Está passando férias em um luxuoso hotel de montanha mas para isso depende da generosidade de uma tia, já que sua família (pai, mãe irmão) passa por dificuldades devido à paixão do pai – um conhecido advogado – pelo jogo. Logo recebe uma carta de sua mãe dizendo que em dois dias necessitarão de 30 mil florins, caso contrário o pai será preso. A carta segue dizendo que aí no hotel hospeda-se um senhor, um rico comerciante em obras de arte, um conhecido da família e implora que peça a ele o dinheiro (parece que esse senhor deve um favor a seu pai). Else pensa em recusar mas cede afinal, e o senhor Dorsday, lhe diz sim, a uma condição: que se deixe olhar nua, durante 15 minutos.

São essas as fundações sobre as quais Schnitzler apoia sua construção psicológica. Else oscila entre deixar que o pai seja aprisionado (por roubar de um orfanato do qual era curador) e atender ao pedido de Dorsday: ir ao seu quarto à meia-noite ou deixar-se ver ao luar, numa clareira da floresta. A jovem sente-se atraída pelo erotismo da situação – sabe-se bonita e sensual e pensa poder manipular Dorsday e o primo Paul, aos quais sente-se atraída e enojada ao mesmo tempo. Tudo o que sabemos de Else e seu drama provém de um silencioso fluxo de consciência, tanto é que os diálogos ocupam menos de 30% da extensão do conto. Entre um sonho que mistura erotismo e morte, e as dúvidas – deve salvar seu pai ou ignorar as súplicas da mãe? –- deve ceder à atração que sente pelo proibido, pela face sensual de um dos lados do dilema que a consome?  Percebe também ser personagem do destino comum a todas as mulheres da época – o cerceamento econômico que as obriga a dar seu corpo através de casamentos indesejados ou, para as mais vulneráveis fazer dele a única moeda de troca de que dispõem. Por fim, para escapar a uma situação para ela incontrolável, irresolvível, Else tenta um suicídio escapista, que não deveria dar certo mas deu. Antes porém ela rouba a exclusividade de Dorsday abrindo à vista dos hóspedes do hotel o casaco sob o qual encontra-se nua. Seus últimos pensamentos dirigem-se à vida, às viagens, a danças, a um marido e família que não existirão.

Dada a carga de sensualidade que perpassa a história e a estreita moralidade do início do século não surpreende que sua publicação tenha demorado 23 anos.

Else e Tristessa tem em comum o estilo – o tal fluxo de consciência, mas com vieses diferentes. Em Jack é uma cachoeira de palavras, algumas vocalizadas, a maioria silenciosas, que descrevem seu mundo exterior: atos, lugares e acontecimentos. O de Else é o fluxo de consciência “padrão”, totalmente interno, em que a escrita segue de perto os pensamentos, que livres dos controle de sua vontade, incessantemente giram em torno de seu dilema.

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