Casas e cerejeiras – o que tem em comum?

Ultimamente na minha cidade assiste-se a um verdadeiro frenesi de demolições. Muitas vezes as picaretas dirigem-se a casas com longa história e/ou casas esteticamente interessantes, como esta das fotos abaixo que vivia tranquila no meu bairro. A primeira foto é do dia 19 de junho e a segunda – pasmem! – dois dias depois.

Acima eu falei em picaretas – que ingenuidade a minha – como mostradopela foto hoje utilizam-se escavadeiras, a caçamba atuando como ferramenta gigante.

Será impressão minha, mas os homens que trabalham nesta atividade são sempre mal-encarados e parecem ter prazer em seu violento trabalho, que realizam rápida e eficientemente. De qualquer modo demolição de casas não tem nada de complexo, pois é mais fácil destruir do que construir e isto vale não apenas para casas.

Duas visões de uma casa de minha rua que já não existe; na primeira é reconhecível sua cara quando viva

À demolição segue a construção, e a casa é quase sempre substituída por um edifício, tão impessoal como desinteressante. Na minha cidade esse processo é dominado por um só construtor que tem a particularidade de, praticamente, clonar cada edifício do anterior; assim, na fachada sempre temos a “sacada gourmet” que se abre para a sala; para os quartos duas janelinhas de aço ou alumínio das quais uma folha se desloca na horizontal e a outra é fixa. Se o apartamento tiver três quartos, outra janelinha idêntica aparece na parede lateral do edifício. Alternativas ao edifício consistem de caixões de concreto com grandes janelas que serão as vitrines da lojas que os ocuparem. Em ambas as soluções a feiura impera.

O típico edifício clone; esse até que é dos melhorzinhos.

A essa degradação estética soma-se o deslocamento afetivo, que suponho o morador daquela casa deve ter sentido ao abandoná-la às picaretas mecânicas, trocando-a por um apartamento frio e impessoal. Estou falando aqui do sentimento de perda que experimenta o morador que viu seus filhos nascerem naquela mesma casa, ou talvez ele mesmo tenha ali nascido e vivido com seus pais. Não estou falando daquele emergente que anseia pela escalada social representada pelo apartamento novo ou a casa recém-construída no condomínio fechado. Este nunca olha para trás.

O sentimento de perda é um tema frequente na literatura, e o que acompanha o processo de “modernização” da minha cidade e de tantas outras é maravilhosamente evocado na peça teatral “O Jardim das Cerejeiras”, o último trabalho de Chekov escrito em 1900. Sua temática é totalmente afastada da questão de degradação estética e afetiva das cidades mas estreitamente relevante a ela.

Resumir ‘O jardim’ parece fácil; afinal a história é simples: uma família cheia de dívidas se vê na iminência de perder sua propriedade, casa e pomar, Em volta deste trivial evento, porém, há várias camadas, uma mais complexa que a outra. Muito brevemente: a matriarca Ranyevskaia, Liubold Andryeevna (russos tem um monte de nomes, e o pior é que nos romances ora usa-se um nome ora outro para a mesma pessoa) seu irmão, Gayev, Leonid Andryeevich e a filha Ania, retornam à sua propriedade no campo às vésperas do leilão que se realizado será apenas suficiente para o pagamento das dívidas acumuladas pela imprevidente, pródiga e irresponsável Andryeevna. A maneira de evitar o desastre é sugerida a ela por um amigo de família, o comerciante Lopakhin: dividir a propriedade em lotes, construir casas de veraneio – dachas em russo – para alugar a moradores da cidade grande; o lucro será mais que suficiente para pagar as dívidas assegura ele. Naturalmente isso implica em eliminar a grande plantação de cerejeiras e demolir todas as casas, inclusive o solar ancestral, o que horroriza Ranyevskaia e seu irmão; a ideia de cortar o pomar de cerejeiras e ver a propriedade entregue a uma multidão de gente estranha soa extremamente vulgar aos dois, Esse o tema principal, a primeira camada, imersa na questão da decadência da nobreza e dos latifundiários e a emergência da burguesia. De fato, Lopakhin é filho de camponeses, antigos servos da família Ranyevsky, esta cuja inabilidade para as questões práticas inspira uma sensação de superioridade ao invejoso e esperto comerciante. Há muitas outras camadas: a rivalidade entre classes, a compulsão para gastar dinheiro, a inflada e orgulhosa ideia que as elites mantém de si mesmas: “perdão, mas a única coisa interessante na nossa província, notável realmente, é nosso pomar de cerejeiras” – diz a Ranyevskaia. A miopia das classes dominantes é representada aqui pela dona da casa, que continua a tratar o pouco dinheiro que sobrou como se fora inextinguível, e por Gayev, que para levantar fundos para pagar os credores perde-se em esquemas alternativos totalmente estapafúrdios, como a pessoa pouco prática que é. Enquanto isso, sem perda de tempo, é justamente o filho dos servos, Lopakhin, que espertamente comparece ao leilão e arremata a propriedade. O destino das cerejeiras está selado.

O final da peça enfatiza a questão da perda, com os Ranyevsky deixando o lugar pela última vez; é o momento mais triste para eles que passaram infância e juventude – os seus melhores anos – naquelas salas e quartos e à sombra das cerejeiras. Lopakhin ao contrário está radiante e já antecipa os futuros lucros. Ele é a mente objetiva em contraposição à dos antigos patrões perdidos em suas reminiscências; é ele quem cuida dos horários da viagem e que nenhuma mala seja esquecida. Sua pressa em vê-los partir é tal que não tem nem o tato de esperar para iniciar o corte das cerejeiras. No final da peça, quando cai o silêncio e todos se foram – menos o velho criado Feers que murmura frases esparsas sobre sua inutilidade – ouve-se ao longe o som do machado.

A característica de um clássico é transcender a sua época, e fazer-se presente a problemas atuais. E foi essa sua habilidade em transitar pelo tempo mantendo-se vivo e atual, que me fez associar o “Jardim das Cerejeiras” às indesejáveis transformações da minha cidade.

PS: sim, eu sei que sem edifícios de apartamentos as cidades teriam enorme extensão, dificultando as comunicações, et., mas precisavam eles ser quase sempre tão feios?

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