O impressionismo é uma escola artística que transita pela pintura, música e literatura. A associação mais conhecida é com a pintura – pense em “impressão do sol nascente” de Claude Monet – tela que aliás nomeou o movimento – ou nas cenas marinhas de Turner. É uma nova maneira de ver a realidade, bem afastada da quase fotográfica dos acadêmicos, que enfatiza o papel da luz na construção da forma e na eliminação dos detalhes. Uma característica importante da arte pictórica impressionista é a dissolução das formas, que perdendo solidez se tornam evanescentes e vaporosas, como o são os sonhos e as lembranças.
O impressionismo na pintura normalmente ocupa o novecentos, mas se o tratamento da luz é sua força motriz, o que fazemos, por exemplo, de Caravaggio, homem do século XVI?
Monet; Impressão do sol nascente.(Das várias reproduções na Internet cada uma tem um tom diferente e não sei se este aqui é o correto – é preciso ir no museu Marmottan em Paris!)
Pelo menos para mim é na música que a qualificação “arte impressionista” se faz mais clara. Os exemplo são muitos, Debussy – “La Mer”; Ravel – “Jeux d´Eau”; Eric Satie, Scriabin, etc. Bem conhecido é o “Grand Canyon Suite”, de F. Grofé (embora eu não o aprecie muito) que recria muito bem um dia no grande desfiladeiro da Califórnia: nascer do sol, tempestade, etc.
Muitas obras dessa escola foram utilizadas em filmes, acompanhando a ação e o ambiente, mas nesses casos é difícil dizer quem reflete quem – a música o filme ou vice-versa. Pense em “Alexander Nevsky” de Prokofiev.
Além da pintura e da música, o impressionismo também se espalhou pela literatura. Uma linguagem rica em metáforas, imagens e descrições consegue transportar o leitor a outra realidade, capturar momentos passados oferecendo detalhes sensoriais que o remetem àquela realidade e/ou àqueles tempos. O modo impressionista de escrever é o meio ideal para a representação de estados da alma, veja o chamado – fluxo de consciência -associado a Virginia Woolf e a Joyce, entre outros
Esses dois são exemplos em prosa, mas poesia é o meio mais frequentemente utilizado neste modo de escrever.
Bem, para mim um exemplo marcante do escrever impressionista é um poema de Fernando Pessoa. Olhando aqui e ali vejo que ele é considerado um escritor modernista, estilo que nas telegráficas explicações a la internet é definido como experimentação e oposição à arte acadêmica. Mas Pessoa é tão grande que se não coube em uma só pessoa, imaginemos caber em uma só escola literária …
O poema é Aniversário. Pode ser lido na internet ou ouvido no YouTube, no canal – “O mundo dos poemas” que é muito bacana. Vou reproduzir aqui alguns trechos apenas, começando pelo núcleo do poema, onde o menino que foi recorda a festa de aniversário.
Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui …
O aparador com muitas coisas – doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado -,
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,
No tempo em que festejavam o dia de meus anos.
Cinco versos apenas, mas que reconstroem intensamente uma cena com seus personagens, sua dinâmica e seu ambiente. O cuidado com que a festa foi preparada, tirando dos armários e cristaleiras as louças “de festa” e os melhores copos, mostra o quão importante era aquele aniversário para o resto da família. As tias velhas que se reencontravam e ativavam um entrecruzar de conversas, fofocas inocentes, expressões de alegria e gestos de carinho. Os primos, cuja presença alegrava o ambiente com seu incessante correr para cá e para lá, no jardim e nos quatro cantos da casa, arriscando derrubar aqui um abajur precariamente pousado sobre um móvel, ali um vaso meio saliente no corredor. E os doces e frutas escolhidos dias antes, a previdência de guardar alguns no fundo do móvel para os proteger por algum tempo da sofreguidão da meninada, tudo mostrava o cuidado com que a festa fora preparada para ele, o personagem central, o mais importante do dia
É possível “ver” a sala de jantar, com sua longa mesa rodeada de cadeiras de espaldar alto; a cristaleira recheada de coisinhas: lembranças de festas de esquecidos casamentos, serviços de chá com peças faltando, pequenas estátuas em porcelana, pratos decorativos, um pássaro empalhado, tudo atrás de portas de vidro fechadas a chave. Nas paredes velhas fotografias ricamente emolduradas e quadros meio desbotados, escurecidos pelo tempo.
Esse era o núcleo do poema, mas ele não estava solto no ar; o contexto tinha sido apresentado nos versos iniciais:
No tempo em que festejavam o dia de meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
…….
…….
…….
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
De não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças
Fica claro daí que o aniversário remonta há muitas décadas atrás. Tempos em que o personagem era parte da grande família – daí as tias velhas e os primos distantes – tempos em que todos cuidavam que sua familiarização com a vida fosse a mais suave possível. Ele era o menino da casa, o herdeiro do qual esperavam-se grandes coisas, carreira, felicidade, continuidade. Mas o tempo passou e o “não saber ter esperanças” resume seu presente após as dificuldades enfrentadas na vida, frustações e fracassos. Não havia mais ninguém para protegê-lo, nem casa, nem as pessoas que o amavam.
E mais:
O que eu sou hoje é terem vendido a casa.
Terem morrido todos, Estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fosforo frio …
Não existe mais nada; casa, parentes, a sensação de segurança se foi e o “fósforo frio”, com sua inutilidade na beira da pia da cozinha é a representação do que sobrou do menino de ontem.
Perpassa nessa segunda parte a incredulidade do homem de que houve um tempo em que se comemorava seu aniversário.
Pronto! O que fica do poema é a impressão de termos espiado uma vida inteira, a partir de um momento impresso na memória.