A limpeza da calçada e as perguntas que dali vem

Há poucos dias a campainha de casa tocou. Era um homem malvestido, com a feição expectante e tímida de quem vai pedir algo. Trocamos os bons dias –

– Posso limpar sua calçada, daí me dá o que o senhor quiser.

Minha calçada tem aqueles requadros de grama que acumulam sujeira e detritos, mas estava razoavelmente limpa – um papelzinho e umas folhas aqui e ali.

– Mas não está precisando … bom, tudo bem, pode limpar.

Meia hora passou, vou olhar. Na grama a limpeza fora redundante, mas em compensação tinha sido retirado da sarjeta toda a poeira, pequenas touceiras e folhas. Meus vinte reais foram recebidos com ar surpreso – claro: tudo é relativo, vinte para mim é uma coisa, outra para ele.

Ele já tinha muitos fios brancos na cabeça, e vendo-o se afastar pensei que apesar de sua boa vontade e honestidade (a calçada estava realmente limpa!) não havia mais esperanças para ele. Quem iria lhe dar um emprego nestes tempos de etarismo, superespecialização, conhecimento técnico?

Na minha casa a campainha toca raramente, e dependendo do horário imagino quem é – “mais um pobre!” e frequentemente acerto. A maioria apenas pede, e ao receber se escapolem rapidamente, não sei se envergonhados ou se perderam a vontade de agradecer. Não os culpo, pois da vida receberam bem pouco!   

Ao fim de encontros desse tipo eu penso – “estamos em um país pobre”. Mas é pobreza ou desigualdade? Por que tanto uma como a outra são tão presentes no mundo? E porque há tanto medo dos pobres, e mais que medo, ódio, que de tão disseminado foi preciso forjar um neologismo para designá-lo: aporofobia?

Uma rapidíssima e superficial visão histórica pode ajudar a começar a entender essas coisas.

Europa e África

É abissal a diferença entre esses dois continentes. Uma das causas é que a agricultura produtiva da Europa iniciou há 9000 anos, enquanto na África somente há 1800 – 2000 anos. Aparece aí o fator geográfico e climático, ambos favoráveis à Europa e desfavoráveis ao continente africano, no qual doenças tipo malária e febre amarela são cruéis inimigas. Além disso, solos tropicais húmidos dificultam a presença de nutrientes, e a falta da estação fria, com neve cobrindo os campos, favorece a proliferação de pragas.

Feição típica de propriedades agrícolas na Europa

Com o avançar do tempo, encontramos a Inglaterra a caminho de se tornar o centro do mundo. De grande importância para sua industrialização foram as leis do enclosure (cercamento)termo que significa privatização das terras que antes eram comuns. Com isso o campo foi esvaziado e passou a ser utilizado na criação de ovelhas para o fornecimento de lã à nascente Indústria têxtil. Consequentemente, no final do século XVIII a classe camponesa estava virtualmente extinta e seus componentes se tornaram mão de obra para a Revolução Industrial (1780 – 1850). Portanto, parece justo chamar o século XIX de “a Era do Desastre” para a classe trabalhadora, pois arrancados da terra os camponeses não se adaptavam às condições extremas da vida na fábrica. A alternativa muitas vezes era o crime, e isso explica por que até hoje o Código Penal inglês é tão severo.

Uma representação do “campo e cidade” e suas diferenças

Nesse período apareceram dispositivos de proteção social que procuravam aliviar a crescente pobreza gerada pelo enclosure e depois pelo desenvolvimento industrial: trata-se da Poor Law e seu mais importante produto a Speenhamland Law (1795)que garantia um subsídio baseado no preço do pão. Desse modo, ao pobre seria assegurado um ganho mínimo “independentemente de seu salário”. O resultado: baixa geral dos salários, desastre para os trabalhadores e vantagem para o empregador. Apesar disso a Poor law foi duramente atacada, com objeções muito semelhantes às que ouvimos hoje com referência ao Bolsa Família.

É claro que o referido enclosure com sua ênfase em lã para alimentar os teares da Revolução Industrialsignificou desemprego no campo (pecuária requer menos mão de obra), menor produção agrícola de alimentos e portanto aumento de preços o que feria mais profundamente aos pobres. Enfim, a Inglaterra acumulou grande riqueza interna, mas a partilhou com muito poucos. 

Obviamente, um fenômeno tão complexo como a pobreza é gerado e controlado por diversas fatores que ainda por cima são interdependentes. Destes, a literatura do tema enfatiza o papel das Instituições – que são os limites que estruturam as relações humanas. Países onde elas são fortes têm maior probabilidade de serem favoráveis à inovação, desenvolvimento e investimentos que geram riqueza (o que não implica em boa distribuição desta!). Instituições débeis conduzem a corrupção, má administração da justiça e instabilidade econômica e política. Esse é um mal claramente identificado na África e alguns países da América do sul e Caribe.

Américas

Na análise do descompasso econômico observado nas Américas norte e sul devemos acrescentar a variável colonizadores. É sabido que a América do norte foi colonizada por ingleses que por sua inclinação religiosa prezavam trabalho, poupança e frugalidade. O resto da América recebeu espanhóis e portugueses, mais interessados em fáceis e rápidos ganhos.

A questão do clima também foi determinante: no norte incentivou pecuária e grãos, ambos com limitada economia de escala, condição favorável à formação de pequenas fazendas, portanto distribuição equilibrada da terra. O clima temperado significou ausência de doenças tropicais o que favoreceu a fixação dos colonizadores nesse lado do mundo. Assim, desde cedo foram formadas Instituições fortes que honraram o direito à propriedade privada dos cidadãos e o respeito aos contratos. Esse estado de coisas foi determinante para a criação de um economia local de mercado. Notar, porém, que o sul dos EUA não era muito diferente da América do Sul e Caribe, com condições climáticas parecidas às daqueles lugares, portanto mais atrasado economicamente que o norte.

Na América do Sul e Caribe o clima fez prosperaram plantações de cana de açúcar, algodão, tabaco, e a extração de látex. Essas atividades exigem economia de escala, o que conduziu à formação de grandes fazendas de propriedade de colonizadores europeus, trabalhadas por escravos e mais tarde por trabalhadores extremamente pobres. A elite local gerou Instituições muito fracas que persistem em alguns países, favorecendo a exploração dos trabalhadores e um capitalismo desenfreado.

Brasil

Os estudos que tratam da questão da pobreza são concordes em concluir que o país não é pobre, mas desigual. Claro, pobreza e desigualdade são condições imbricadas e difíceis de separar, e pretendo tratar da segunda, exclusivamente em um próximo post.

Hoje o Brasil ocupa a 9a posição no ranking mundial, com um PIB de USD 2,17 Tri (2023), junto com Italia (2,18 Tri) e Canadá (2,11 Tri). É um país de dimensões continentais, cortando latitudes indo de equatoriais a sub-tropicais, e com isso oferece climas e terras para uma variedade de culturas. Estas se desenvolveram em regime de latifúndio, o que favorece monoculturas mecanizadas voltadas para a exportação ocupando um mínimo de mão de obra.

Soja em Mato Grosso do Sul

A agricultura hoje é agrobusiness, sem nenhuma dimensão social e a concentração de propriedade da terra vem desde a colonização. Não há dúvida que a timidez da reforma agrária contribuiu fortemente para o esvaziamento do campo e migração para as cidades de pessoas sem qualificação para as atividades tecnologicamente complexas ali requeridas, jogando-as – na melhor das hipóteses – para a pessimamente remunerada informalidade. Além disso, o solo é rico em minérios de todo o tipo e isto significou, e ainda significa, sua extração predatória, levada a efeito por uma classe empresarial inescrupulosa e por trabalhadores em condições próximas à escravidão.

Ainda, o Brasil foi o último país do mundo a abolir a escravidão; o que veio depois – o abandono à sua sorte dos escravos libertos – contribuiu para formar uma massa trabalhadora amorfa, excluída e marginalizada.

Por fim lembremos a ausência de políticas públicas dirigidas á mitigação da pobreza, sendo que a única com algum impacto – a Bolsa Família – tem apenas uma década de vida.  

Bem, o IBGE me informa que hoje (2o trimestre 2024) a taxa desemprego é igual a 6,9%. Legal, mas isso significa 7,5 Mi de pessoas, uma das quais limpou minha calçada ontem. 

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