O estilo de vida da classe média do final século XX e a do século atual são revistas. É dada atenção especial à mesma como consumidora, inicialmente contida e espartana, mas desordenada nos últimos anos, e comentadas as razões para esse comportamento. É analisado o papel da meritocracia no comportamento social dessa classe, que é geralmente carente de caridade e empatia.
Gostaria de falar um pouco sobre aquela parte da população que chamam de ‘classe média’. Por um lado muito criticada – lembrem da filósofa Marilena Chauí com seu talvez excessivo “eu odeio a classe média” – mas por outro olhada como um centro de estabilidade, trabalho duro e sadios valores familiares. Minha despretensiosa análise não lida com essa polarização de visões mas com sua evolução temporal.
A classe média brasileira dos anos 50 – 70 era mais modesta – no bom sentido – do que a de hoje. Andava-se tranquilamente de ônibus e o carro, quando se tinha, era fusca, Gordini, algum pequeno europeu, coisas assim. Claro, havia carros importados, mas os ocupantes eram componentes da dita elite. Mesmo assim as antigas elites eram bastante contidas: Fords e Chevrolets, raríssimos os esportivos, os Cadillacs, Oldsmobile, Jaguars. Aliás, não era de bom-tom passar com um desses perto de um ponto de ônibus em dia de chuva, por exemplo.
A classe média daqueles anos morava em apartamentos e casas geminadas. Cem metros quadrados era suficiente. As casas eram muito parecidas por dentro e aos ocupantes não passava pela cabeça alterar o lay out ou a fachada – a obsessão de personaliza-las virá mais tarde, assim como a obsessão de guardar o carro em casa.

Casinhas geminadas em uma rua de São Paulo – em segundo plano os germes de sua destruição.
Mesmo as casas das classes abastada e média superior não passavam de 200 – 250 metros quadrados. Obviamente já existiam os Jardins Europa e América; exclusivos dos milionários (assim se dizia então) que viviam em esplêndido isolamento – os Jardins eram atravessados por ruas tortuosas para impedir que o resto dos mortais utilizasse esses bairros como atalho para seu ir e vir, e as mansões eram ocultadas por altos muros. Em contraste com essa segunda medida as casas da classe média não tinham muros, mas seus habitantes não costumavam, como nas classes populares, se debruçar sobre o baixo muro divisório de uma e outra casa para fofocar sobre a vida. Não, mesmo naquele tempo a classe média era discreta e meio sisuda, dando-se a pouca interação fora do círculo familiar.
A classe média daquele tempo prezava a educação. Quase todas as casas tinham a Enciclopédia Barsa e/ou O tesouro da Juventude, itens bastante caros geralmente comprados em prestações a perder de vista. Personagem comum que frequentava os bairros de classe média era o vendedor de enciclopédias; esse não frequentava nem os bairros pobres, nos quais naturalmente faltava dinheiro, ou os bairros ricos, em que caracteristicamente faltava interesse por cultura. Naquele tempo o ensino público era de razoável a bom, o privado era preenchido em quase totalidade pela classe abastada e ainda não havia universidades particulares. De modo geral a classe média apreciava a educação universitária e desdenhava a educação técnica que lhe lembrava colarinhos azuis. Isso provocava importantes tensões, pois a oferta – basicamente apenas a USP – era muito menor que a procura. No final do período começaram a aparecer algumas particulares, mas a frequenta-las eram quase sempre os filhos da classe rica.
A classe média daquele tempo achava que trabalho rende dividendos: em satisfação do dever cumprido, em reconhecimento e por ser a porta para ascensão social. O consumo estava entre os objetivos das famílias, mas era contido por uma visão algo espartana da vida. As profissões se classificavam quase sempre como colarinho branco: vendedores, contadores gerentes de compras, publicitários, professores, lojistas, auditores, secretária executiva. Havia também engenheiros, advogados, donos de pequenas empresas e economistas, carreiras essas que ocupavam o estrato superior da classe.
O novo século trouxe novidades na economia: entre seu início e 2019 o PIB cresceu ao ritmo de 3,6% / ano mas como sabemos os benefícios se estenderam preferencialmente às classes mais pobres, ao estrato inferior da classe média, e – desproporcionalmente – à elite financeira. Tem sido dito e repetido que a classe média está imprensada entre a elite, à qual aspira, e os pobres, dos quais quer distância, e o stress resultante tem estranhas consequências: por exemplo, em certos bairros não é raro ver automóveis que quase não cabem nos abrigos de carro de casas modestas. O automóvel representa status e sua ubiquidade significa que pode ser ostentado por aí; a casa não: é imóvel. Outra consequência é a obsessão com a propriedade e a segurança. Falei dos muros dos bairros ricos – eles se estenderam aos de classe média, eriçados de cercas elétricas e espirais cortantes como navalhas. Alarmes residenciais por todo o canto espalham seu grito ao serem ligados e desligados.

Casas novas em rua de classe média em São Paulo.
O consumo, que devia ser simplesmente a satisfação de necessidades, é alimentado por um fluxo de novas necessidades criadas pela satisfação das antigas, e assim por diante em círculos. Portanto aquela visão espartana, moralizante, que limitava o consumo desordenado da classe média do século XX desapareceu. Renasceu como elemento de diferenciação social, de construção de imagem, com as pessoas visando cada vez mais produtos e marcas que caracterizam a elite à qual aspiram. Essa diferenciação é sempre acompanhada da alienação ao lugar social que o grupo de fato ocupa na sociedade. A distância entre seu lugar social real e o desejado é naturalmente fonte de acentuado stress, do qual se aproveitam os profissionais de propaganda e marketing. É interessante observar como os meios de comunicação, novelas em particular, quase sempre apresentam grupos familiares alta classe média ou mesmo decididamente burgueses, levando os espectadores a identificar-se com os personagens, construindo-se assim uma realidade virtual. Naturalmente, tudo o que é visto na telinha tende a ser imitado, roupas, modos de falar, móveis, etc.
Desnecessário dizer que o consumo é quase sempre realizado à base de empréstimos e longas prestações, o que compromete o equilíbrio financeiro da família. Assim, querendo olhar para cima termina-se por olhar para baixo e experimentar a segunda fonte de stress com sinal trocado: o temor de um downgrade para a classe inferior.
A classe média sabe muito bem que se parar de trabalhar, mesmo por curtos períodos, a descida para o nível inferior é quase certa; seu estilo de vida lhe deixou poucos recursos emergenciais. Ainda mais, ultimamente se deu conta que com o avanço da inteligência artificial, são justamente as profissões mais praticadas pela classe média – colarinhos brancos – as que serão deslocadas, assim como a robotização dos primórdios da IA (anos ´70 e ´80) deslocou hordas de operários.
Por fim, vale aqui abordar um conceito fortemente enraizado na classe média: a meritocracia, crença que diz que o sucesso na vida depende exclusivamente de nós mesmos, esquecendo vantagens sociais como loteria do nascimento, educação privada, boa alimentação desde a infância, etc. A geração que ascendeu nas primeiras duas décadas do século acredita firmemente nesse conceito, sem atinar que ela podem ter apenas surfado na onda do crescimento econômico do período. Essa atitude poderia ser benéfica por gerar autoconfiança, mas infelizmente sempre resvala em arrogância, falta de solidariedade e de empatia com o “outro”, o menos favorecido. Com a crise atual e o resultante stress que a classe média está experimentando essa visão do outro tem endurecido e a qualificação “perdedor” ouve-se com crescente frequência da boca dos auto definidos vencedores. É inevitável que essa atitude leve a determinada posição política (que não será comentada aqui) da classe que – lembremos – representa em 2025 cerca de 46 % da população.

