Palavras novas são necessárias (infelizmente)

Em dois post deste blog eu falei de moradores de rua: um era “O anjo sujo da Praça da Sé”, que é meio real e meio inventado, e o outro “O dodo e o gene confiante”, que contém alguns dados sobre a população de rua e a visão que dela algumas pessoas têm.

Mas quando se pensa que se viu e escreveu o suficiente sobre o tema – dentro das minhas limitações e deste blog –  eis que aparece um evento novo e particularmente chocante. Refiro-me à tentativa de atear fogo em dois sem-teto que no Rio de Janeiro dormiam tranquilamente em uma calçada.

O crime traz à lembrança outro, que vitimou o cacique Pataxó Galdino Jesus dos Santos, morto pelas queimaduras recebidas enquanto dormia num banco de ponto de ônibus em Brasília. Isso foi em 1997; Galdino estava lá por não ter conseguido entrar na pensão onde se hospedara pois esta fechava às 22 h. Eram cinco os rapazes, entre 16 e 19 anos, recém saídos da balada. Dificilmente classificáveis como seres humanos e mesmo como animais, um deles tenta justificar sua ação, dizendo que “pensava que fosse um mendigo”.

Daquele 1997 para cá os cinco se multiplicaram em progressão geométrica, a ponto que era preciso criar um termo para descrever a atitude que grande parte da população adota com moradores de rua. E assim surgiu a palavra aporofobia, montada como já vimos no “Dodo” a partir de raízes latinas: aporo = pobre fobia = medo mórbido, horror, aversão

No mesmo post eu mostrei que a invenção dessa palavra deve-se à professora emérita da Universidade de València Adela Cortina. Mas é preciso ir além, é preciso que a linguagem disponha de um termo para descrever as consequências da aporofobia. Mas por que essa necessidade? – se já o caso do cacique Galdino (e tantos outros) não a justifica suficientemente, vejamos este outro:

Rio de Janeiro, bairro do Botafogo (nome bem apropriado!), Rua São Manuel, madrugada do dia 12 de outubro. Um sujeito sai de sua casa, joga gasolina sobre dois sem-teto que dormiam e – pasmem – sobre seu cachorro também e ateia fogo. A foto mostra um gordinho aparentemente de pijama, roupão e chinelo de dedo já no processo de atear fogo.

Cidadão de bem defendendo a propriedade e a moralidade

Os dois sem-teto se puseram a salvo e o cão parece surpreso; acostumado a ser tratado com bondade por seus amigos de infortúnio, subitamente se depara com maldade em estado puro. Mas não perde tempo a elucubrar e, vira-lata esperto que é, se safa facilmente do perigo.

A rua São Manuel é uma típica rua tranquila. Casas antigas de classe média, média baixa até, e alguns prédios algo pretensiosos. O homem gordo pode ter saído de uma das casinhas, e não sabemos se foi identificado ou não. Mas isso não interessa muito, o ato é apenas um evento individual nascido da nuvem escura que lentamente se formou e hoje paira sobre as grandes cidades, nuvem habitada pelos que orgulhosamente se autorreferenciam como gente de bem, honestos trabalhadores, pagadores de impostos, etc. e etc., que julgam-se guardiões da moralidade e defensores da família, por isso mesmo autorizados a maltratar, escorraçar e algumas vezes atear fogo a marginais, preguiçosos, drogados, fracassados, etc. e etc., como fez o homem gordo.

A tranquila Rua São Manuel em Botafogo, onde o perigo mora dentro das casas, não na rua

Como já mencionado, é urgente criar um vocábulo para as consequências da aporofobia, que parecem estar se tornando frequentes. Pode-se recorrer novamente ao latim, do qual derivam vários nomes utilizados hoje, inclusive alguns bem frequentes nas crônicas policiais; por exemplo: uxor, significa “esposa”

cida,  -cida ou -cidium, que significa “aquele que mata” ou “o ato de matar”, derivado do verbo caedere, que significa “cortar” ou “matar”.

Portanto, uxoricida literalmente significa “aquele que mata a esposa”.

Se não estiver satisfeito, que tal parricida assassino do pai, ou matricida? – ambos construídos de raízes latinas

Voltando ao nosso objetivo inicial, que era inventar um vocábulo para as consequências da aporofobia, temos;

aporo, que já sabemos o significado, e – cida, idem

e obviamente o aporocida é o agente do aporocídio, que é o termo procurado..

E assim esses dois termos foram criados e estão prontos para o uso. Mas ao contrário de todos os criadores de alguma coisa, que querem que ela seja eterna, eu espero que esses vocábulos caiam em desuso e logo sejam esquecidos.

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