Outro dia minha filha me enviou a foto de sua primeira mesa de trabalho. Ela acabou de conseguir uma bolsa de Iniciação Científica (IC) do CNPq – Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, e está toda contente. Como de costume o orientador lhe conseguiu um cantinho no laboratório. Bolsas de IC são dadas a alunos de graduação, que paralelamente às aulas realizam algum trabalho de pesquisa, um projeto próprio ou encaixado em projetos maiores de mestrado ou doutorado. Isso pelo menos nas Instituições Federais.
Olhando a foto da mesinha pensei que eu estava vendo a primeira de uma longa série de mesas de trabalho, provavelmente com tamanho crescente e formas diversas. Essa primeira é pequenina, mas simboliza o limiar da vida profissional, vida que para todos nós vai ocupar não menos de 50% de nossos dias, senão mais.
A vida profissional é feita de etapas; a primeira é a escolha, que pode ser única ou múltipla. Em seguida à escolha definitiva decorre a vida profissional propriamente dita, e finalmente o último ato – a aposentadoria. O primeiro ato, a escolha tem como pressuposto nos preparamos para aumentar nosso valor como mercadoria no mundo do trabalho. Isso vale para uma fração de privilegiados que podem estudar; os restantes (que são a maioria) deverão se contentar com um trabalho qualquer para botar na mesa o pão de todos os dias.
O primeiro ato tem muitos atores, o principal e os coadjuvantes. Estes são os “mais velhos”, que com a melhor das intenções do mundo querem espargir seus conselhos ao principal – há os que aconselham emprego ou empreendimento que faça ganhar muito dinheiro, como lembro alguém sugerindo à minha filha. Ou então seguem sugestões mais específicas, médico, engenheiro, contador…etc. À essa altura peço licença para abrir um parênteses, uma digressão que não parece ter nada a ver – relacionada com uma frase que existe na Carteira Profissional.
Este é o documento que deveria acompanhar trabalhadores de qualquer tipo, nascido em 1932 junto com as Leis Trabalhistas de Getúlio Vargas. Na segunda ou terceira página das edições antigas, encontra-se a tal frase; tom paternalista e petulante, estilo anos ’30, ilustrando as maravilhas da carteira. Transcrevo aqui o trecho final da tal frase:
A carteira, pelos lançamentos que recebe, configura a história de uma vida. Quem a examinar, logo verá se o portador é um temperamento aquietado ou versátil; se ama a profissão escolhida ou ainda não encontrou sua vocação; se andou de fábrica em fábrica como uma abelha, ou permaneceu no mesmo estabelecimento, subindo a escala profissional. Pode ser um padrão de honra. Pode ser uma advertência.
São palavras arrogantes (algo amaciadas em edições mais modernas da carteira), mas acima de tudo palavras expressando um pensamento totalmente anacrônico. O tempo passou e hoje o “permaneceu no mesmo estabelecimento” é considerado ponto negativo, denotando imobilismo e falta de iniciativa; um meio fracasso enfim. Hoje muda-se de emprego continuamente, especialmente nas áreas financeira e de informática com seus padrões de honra completamente distintos, residindo especialmente na marca de carro que a pessoa dirige, no eventual Rolex e no brilho da vida social. Outra indicação do passar do tempo é o trecho: “…se andou de fábrica em fábrica como uma abelha...”. Hoje não existem mais fábricas, ou quase – os capitais que se transformavam em máquinas e equipamentos hoje alimentam o mercado financeiro que realiza o milagre do lucro sem trabalho. Ou dinheiro para quem já o tem.
Um exemplo de Detroit hoje, ontem a cidade do automóvel americano.
O mundo industrial que sobrou perdeu seu brilho – coisas do passado dizem os jovens, que hoje visam empregos com nomes abstrusos, preferivelmente em língua inglesa, tais como: engenheiros de Fintech, analistas de Business Intelligence, People Analytics e semelhantes. Também super-cotados são os especialistas em IA, em sustentabilidade ambiental, em robótica, em comunicação e marketing, e logicamente empregos tipo Avenida Faria Lima: gestão de risco, assessor de private banking, etc.
Mas também há outra margem no rio – a do negócio próprio, tão endeusado hoje em dia não se sabe se para desviar a atenção da crescente dificuldade que um jovem tem para encontrar um emprego, ou se para atrair alunos para cursos de empreendedorismo (que alguns até acham que devam ter status universitário) que se multiplicam por aí.
Enfim, tudo isso mostra quão vintage é a petulante frase da carteira. Também mostra quão inócua e fora do tempo é a boa intenção dos mais velhos em passar sua experiência aos jovens às voltas da preparação para alguma carreira. No mundo do trabalho de hoje são tão anacrônicos quanto a frase da carteira profissional.
E aí, superada a etapa da escolha vem a segunda, que terá muitos anos de duração – a vida profissional propriamente dita. O indivíduo imaginário que estamos acompanhando aqui é dos que podiam escolher, e se não escolheu mal (por má sorte, indolência ou seguindo conselhos inócuos vindos do passado) poderá ter muitos anos de trabalho criativo e cheio de satisfações; e mais, se for esperto vai considerar sua boa remuneração como um bônus, não como objetivo principal. Vai sem dizer que os que não tiveram o privilégio de escolher por não ter as qualificações que hoje o mercado exige deverão enfrentar uma sucessão monótona de tarefas repetitivas e alienantes, o “serviço, o “trampo” enfim. São as profissões antigas, e pior, as profissões “sem carteira assinada”: os serviços e a escravidão moderna do motoboy, motorista de Uber, televendas e coisas do tipo.
Colmeias sem abelhas
Mas aqui estamos tratando de trabalho criativo, ‘cuja boa remuneração… não é o objetivo principal – ou não deveria ser’. Parece fácil essa atitude superior face ao dinheiro, mas no mundo de hoje as rodas do mercado giram tocadas pelo consumo, energicamente adubado pelo marketing “científico”, o que por sua vez vai alimentar a necessidade de mais dinheiro. São tempos de monetização da vida, ou seja, unidades monetárias são a medida de toda ação humana.
Por isso, quem teve a sorte de escolher seu lugar no mundo do trabalho deve ter cuidado para não ser engolido por essas rodas e trabalhar mais do que o necessário para uma vida boa e confortável. Só podemos dirigir um carro por vez e comer uma certa quantidade de comida por dia.
Além dessa consideração lógica, vem a consideração utilitária: deixar tempo para o ócio é a melhor maneira para ter boas ideias que podem reverter em melhor eficiência no trabalho. A criatividade deve ter ambiente para se desenvolver, e o andar sempre olhando à frente como cavalo de carroça faz perder as oportunidades que se escondem à beira do caminho.
A disfunção da sociedade capitalista moderna (que infelizmente é a única que temos, por enquanto) endeusou de tal modo o trabalho que as pessoas se orgulham por passar – espontaneamente – longas horas no escritório. Não se perguntam se as tarefas do dia podiam ter sido realizadas em quatro ou cinco horas – onde iria sua auto importância então? Esses são os tipos que mesmo sem serem perguntados te dizem: – “são três anos que não tiro férias!” – e orgulhosamente te olham esperando uma palavra de congratulatório elogio. A verdade é que se trabalhassem quatro ou cinco horas com a mesma eficiência das dez, não saberiam o que fazer das horas restantes – lazer, leitura, convívio com amigos e família ou simples contemplação do dia estão longe seus interesses.
A última etapa é a despedida, e a qualidade do que segue – a aposentadoria – é função da precedente. Se na segunda etapa adubei com interesses diversos e permanentes um jardim imaginário e iniciei a cultivá-lo, a vida não será tão vazia como pensava décadas atrás.