Ele era um dos melhores fotógrafos de Paris. Desde jovem se destacou pela técnica e senso artístico. Assim, tornou-se o fotografo da sociedade parisiense, e a lista de duques, condessinhas e príncipes por ele fotografados era impressionante, mesmo para os que sabem que na Paris de 1900 havia mais nobres que pássaros nos parques.
O nosso fotógrafo também tinha a habilidade de imortalizar o inusitado: o bonde atropelou uma velhinha? – lá estava ele a fotografar. Um carro – um De Dion-Bouton a vapor com a caldeira estourada, um barco com uma alegre orquestra a navegar no Sena… coisas desse tipo.E assim foi que naquela tarde ele decidiu ir até o Bois de Boulogne; lá sempre se encontram lindas babás a cuidar de crianças ricas, senhoras elegantes e distintos cavalheiros, possíveis alvos das lentes de sua máquina.
Mas naquele dia havia uma movimentação atípica – pessoas se dirigiam para o campo de Bagatelle onde já uma discreta multidão tinha se juntado, “Ah sim, é hoje que aquele aviador vai fazer sua quarta tentativa – vamos até lá ver o que consegue” pensou o fotógrafo.
E era isso – lá por sobre a multidão era visível uma espécie de cruz feita de panos brancos, esticados sobre uma estrutura de madeira e pousada sobre rodas de bicicleta. Em cima, um elegante senhor ocupava-se com um complicado mecanismo acoplado a uma hélice de madeira.
E o tal senhor ero o famoso Santos Dumont, o brasileiro tão falado em Paris naquele começo de século.
De repente o aviador viu o fotógrafo com sua máquina, e:
– Olá meu amigo, gostaria de fotografar o meu voo? Vejo que sua câmera é bem moderna, mais do que essas outras tipo caixão que estão preparadas.
– Com prazer Senhor Dumont, será uma honra!
E gentilmente o aviador explicou onde iria realizar sua corrida para o céu, e indicou o ponto de onde – segundo seus cálculos – devia se levantar do chão.
– Fique lá com sua máquina e fique pronto, que o voo vai ser curto e só terá uma chance para a foto.
E assim foi – o artefato seguiu a hélice, correu balançando e parecendo que ia se desfazer, mas no ponto indicado pelo aviador tirou as rodas do chão, voou até uma altura de 2 metros por uma distância de cerca de 60 metros. A aterrissagem foi meio desastrosa, as rodas de bicicleta não resistiram, mas – sucesso! – o primeiro voo autônomo fora realizado e perante grande multidão. Era 23 de outubro 1906.
O primeiro voo (4a tentativa) do 14Bis, com à esquerda, visível o nosso fotógrafo em ação.
A partir desse dia o fotógrafo tornou-se o retratista oficial de Santos Dumont; o acompanhava em todos os voos, inclusive fotografava os desenhos de projeto do 14Bis e de outros aparelhos; foi a primeira pessoa a ver os desenhos do Demoiselle, o elegante avião que iria voar em 1907. Um dia, Santos Dumont inventou um sistema para ampliação de fotos e com essa ajuda foram produzidas grandes imagens desse novo avião.
E foi no campo de Bagatelle, durante testes do Demoiselle que o fotógrafo viu a jovem que viria a ser sua mulher. Atraído, quis conhece-la, ato difícil pois a jovem estava em companhia de diversas pessoas, sua família certamente. E depois, estávamos em 1907! Mas o rapaz era esperto e cheio de expedientes, e usou a fotografia como pretexto para se aproximar:
– Com licença – teria grande prazer se pudesse fotografar este elegante grupo de pessoas, sou o fotógrafo oficial do Sr. Santos Dumont, mas também faço fotos de grupo; assim, peço sua permissão etc. etc.
E de uma chapa fotográfica nasceu uma pessoa em carne e ossos, estes não eram visíveis mas aquela era agradável à vista e provavelmente ao tato. Sua dona chamava-se Juliette e em poucos meses não só o Demoiselle, mas também um casamento estava no ar.
– Meus parabéns, toda a felicidade ao casal.
Quem falava assim era o próprio Santos Dumont, que tinha se tornado de cliente do fotógrafo a amigo. E continuou: “Espero que meu presente de casamento seja de vosso agrado: tenho o prazer de lhes oferecer a lua de mel – um mês no Grand Hotel de Couburg – sou um habitué de lá, e já comuniquei ao gerente, Monsieur Chantal que tudo é por minha conta. Divirtam-se, que a Normandia é uma maravilha nesta época do ano. E se um mês for pouco, fiquem lá o tempo que quiserem!”.
E assim foi. As manhãs eram passadas na praia; após o almoço uma siesta reparadora e depois o passeio de mão dadas na Promenade, até o lento pôr do sol.
O beira-mar de Cauburg, hoje Promenade Marcel Proust
Nesses passeios muitas vezes cruzavam com um elegante senhor, de ar triste, que sem dizer palavra os cumprimentava com um leve sorriso. À pergunta de Juliette, M. Chantal respondeu que “deve ser Monsieur Marcel Proust, o famoso escritor, que nos dá a honra de se hospedar com frequência no hotel”.
Aproximava-se o fim dos trinta dias, mas antes desse término eis que chega o aniversário de Juliette. Na véspera o fotógrafo encomendou uma dúzia de rosas vermelhas e o hotel o precedeu com sua dúzia de rosas brancas, e todas inundaram o quarto com seu delicado perfume.
O dia do aniversário amanheceu belíssimo e o casal foi à praia; lá o rapaz mais uma vez fotografou sua mulher deitada na areia, olhos fechados, a imagem da tranquilidade, e teve uma ideia. Voltou ao quarto desfolhou quase todas as rosas – correu para a praia e sem avisar começou a espalha-las por sobre Juliette. A jovem acordou banhada por perfumada chuva branca e vermelha, e feliz, abraçou o marido dizendo que esse fora o melhor aniversário de sua vida.
As férias terminaram, o casal voltou à rotina parisiense e no ano seguinte veio a notícia da chegada de um herdeiro. O fotógrafo pensou no senhor Dumont como padrinho do que virá, homem ou mulher que seja. Mas oito meses depois o que veio foi uma desesperada corrida ao hospital, rostos sérios de médicos e enfermeiras, longa espera nos corredores do hospital, e:
– Não foi possível salvá-las, sinto muito meu senhor.
O fotógrafo passou dois meses fechado em casa; o Sr. Dumont sempre o visitava, e para animá-lo propunha-lhe todas as vezes uma série de fotos do Demoiselle, mas inutilmente. Em 1915 o aviador resolveu viajar ao Brasil e em sua última visita convidou o amigo a acompanha-lo, o que encontrou nova recusa. Sua depressão era evidente, e foi com pesar que Santos Dumont viajou para não voltar.
Mas um dia o fotógrafo pareceu reviver – procurou nos negativos aquele de Juliette deitada na areia, prestes a acolher a chuva de rosas. E começou a copia-lo utilizando o dispositivo ampliador inventado pelo Sr. Dumont, ampliando e ampliando pequenas regiões da foto original, até que ordenando todas as fotos parciais a figura inteira de Juliette abrangeria uma área de cerca de mil metros quadrados. Com as fotos ainda empilhadas em casa saiu a comprar centenas de rosas, o que lhe foi impedido por um guarda chamado pelo preocupado florista
– Preciso comprar as rosas, muitas rosas; o Sr. Santos Dumont, o famoso aviador vai me levar em seu avião para que do céu eu possa espalhar milhares de pétalas de rosas sobre minha esposa! Me deixe, preciso avisar o Sr. Dumont para que prepare seu avião …
Ambulância francesa, circa 1915.
Uma ambulância foi chamada e com a repetição contínua de seu estranho comportamento, o fotografo foi encerrado em um hospício onde viveu tranquilo o resto de seus dias.
Ele só se agitava quando ouvia ruído de motores de avião. Então corria pelo pátio gritando:
– Sr. Dumond, estou aqui – já comprei as rosas, vamos carrega-las em seu avião e voar, voar sobre minha Juliette deitada ao sol na praia de Couburg!