O maravilhoso anjo sujo da Praça da Sé

O que isso professor – O maravilhoso?

Terceiro ginasial, aula de português no Colégio Arquidiocesano. O irmão marista pareceu contente com a pergunta, que quebrou a sonolência daquela manhã fria. Explicou:

– É um gênero literário em que aparecem coisas estranhas, fantásticas; por exemplo unicórnios, fadas, anjos. São elementos irreais para o leitor, mas não para os outros personagens do texto.

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A presente história é uma mistura do maravilhoso com o real. Acho que inclassificável, portanto. 

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Senti que era ela, mesmo sem a ver. Finalmente me voltei, sem receio nem surpresa.

Estava vestida de branco como para um reveillon na praia. Dourada de sol, com os longos cílios de que me lembrava. Olhos escuros e inteligentes, traços tranquilos e belíssimos.

Com sua voz calma disse:

– Finalmente te achei

– ???????.

– As primeiras semanas são difíceis – é tudo tão estranho lá onde estou agora, especialmente para mim.

– Por que especialmente para você?

– Olha minhas roupas, minhas mãos, meu cabelo, minha pele… lembra como eu era? Toda minha vida passada naquela praça como numa ilha habitada por cobras; nada conheci além da Praça de Sé.

Mostrou-me as mãos – limpas e delicadas, os pulsos finos e elegantes saindo das mangas da blusa estonteantemente branca.

– Não estou com fome, nem estou mais doente. O vírus me matou, mas matou a si mesmo. Sinto-me tão bem agora e então vim procurá-lo.

– Por causa daquele dia?

– Você parou por mim

– As três senhoras também pararam, aquelas que chamaram a ambulância.

– Sim, mas você ficou. 

Naquela manhã em que ela, assim do nada, me apareceu eu estava em uma arquibancada do Ibirapuera, olhando sem interesse aeromodelos voar bobamente em círculos.

– Você ficou, e quer saber o que pensei?

– ????

– Que eu iria atrapalhar tua manhã de domingo. Naquela manhã você estava fugindo; eu sei do que, mas não vou dizer. Ficou flanando de carro pelo centro e acabou na Praça da Sé. Sabe? – eu sempre pensei ter nascido ali na praça. Lembrava-me de uma mulher muito grande que me segurava pela mão ao atravessar as ruas. Uma manhã eu acordei e ela estava fria – gelada. Veio um carro branco e a levou embora. Fiquei por ali – já comia sozinha.  Mas hoje sei que não sou da praça – sou de muito longe e logo vou visitar minha cidade.

– Como chegas até lá?

– Basta pensar nela. É assim que estou aqui – pensei em você. Bem, naquele domingo era tanta a tua sorte, ou melhor, teu azar, que tinha até lugar para estacionar na Sé. Desceu, atravessou a praça e começou a subir as escadas da Catedral. O que chamam a casa de Deus. Conte você agora, depois quero que me mostre coisas que não conheço; mas conte primeiro.

– Subi as escadas e te vi.

– Fala, fala, não tenhas medo, estou tão bem agora. Fala, meu amigo, meu grande amigo daquele domingo. Sabe, você foi a primeira pessoa que quis ver, depois que me desvencilhei daquela neblina suja que foi minha vida. Conta, conta, quero saber como eu era.

– Eras Jesus Cristo em forma de mulher, deitada na escadaria da catedral. Suja de não se perceber onde terminava a roupa e onde iniciava o corpo, a pele. Percebi que você estava molhada, vazando, urina, fezes. Parei, não sabia o que fazer, três senhoras te olhavam espantadas – queriam, mas também não sabiam como ajudar, tudo era tão terrível e a morte sentada ali perto.

– Você estava dizendo para que elas telefonassem ao SAMU, que não tinha celular; isso me fez abrir os olhos e te ver. E chegaste mais perto… continua, continua a contar

– Pensei que você fosse uma velha…, mas daí foi como um vulto emergindo lentamente do fundo de um rio de águas turvas, o rosto cada vez mais nítido, como que rejuvenescendo conforme subia e percebi que eras uma jovem, quase uma menina. De longos cílios negros. Daí entrei correndo na catedral, vi duas fileiras de imensas colunas cinzentas altas até o céu, que permanecia distante, tão distante que de lá anjos e santos não podiam ver Jesus Cristo, descido à terra, todo sujo na escadaria da casa de Seu Pai.

– Foi o que eu te disse, lembra? “Estou toda suja”. Também disse que estava com disenteria e que tinha AIDS disse tudo de isso de mim – Aquilo resumia tudo.

– Eu entrei na catedral procurando auxílio; na penumbra encontrei um segurança – “não posso sair daqui” disse “mas fale no posto policial, lá no meio da praça”. Ele era grande, forte e bom. Eu percebi que para ele fazia diferença que alguém estivesse morrendo.

– Morrendo? Foi o que você disse a ele?

– Saí de novo; as três senhoras disseram que a ambulância estava vindo, se aproximaram de você e disseram que tinham que ir. “Fica com Deus” uma murmurou. Pessoas subiam e desciam a escadaria parecendo não te ver. Você estava cuspindo sangue.

– Eu estava tão acostumada a ser ignorada e pisada. Mas não estava acostumada a ouvir o que você me disse: “vou ficar com você até a ambulância chegar”. Eu estava muito fraca e te disse “as pessoas são más”, e acrescentei alguma coisa, baixinho. Você se aproximou mais e pediu para repetir, não tinha ouvido. “Quero pedir uma coisa, mas tenho vergonha” – “o que é? Fala” – “queria um marmitex”

– Olha, não tenho dinheiro nenhum aqui, mas vou até uma caixa eletrônica e volto aqui”

– Não acredito” eu disse. “Hoje sei tudo o que você fez então: largou o carro aqui, correu para lá e para cá nas ruas dos bancos; nenhum tinha as caixas eletrônicas abertas. De taxi foi até a Praça da República, que lá tem uma caixa na rua, pegou o dinheiro e voltou à praça da Sé. A ambulância tinha chegado – você estava combatido entre me ver ou eu ter sido levada pela ambulância. Mas é generoso, preferia a segunda possibilidade”.

– Os degraus estavam secos, como se a pedra tivesse absorvido teu sangue, urina, tuas fezes líquidas.

– “Morri naquele domingo mesmo; durante a noite, acho”.

E sorriu. Enquanto falava tornava-se cada vez mais linda, radiante, cabelos ao vento, olhos brilhando e ridentes. Dois senhores apareceram e sentaram pouco distante. Um aviãozinho, patético em sua pequenez estava sendo abastecido e logo tomou voo com seu barulho irritante. Eles olharam para trás uma ou duas vezes, invejando-me a lindíssima jovem.

– “Um daqueles homens está matutando se sou sua filha ou…”

E riu, sacudindo os cabelos.

– Quero ficar um pouco contigo, posso? Quero voltar com você àqueles dias, antes de eu morrer. Tem tanta coisa que eu não sei. Lá naquela praça só pensava em comida, em fugir dos que me batiam, em procurar lugares seguros para dormir. Em me abrigar da chuva. Às vezes ela vinha durante a noite, eu acordava molhada, aquele frio penetrando subitamente nas roupas, um frio que carregaria comigo o dia inteiro. As roupas sujas não secam nunca, sabia?

Pátio do Colégio – noite em frente ao Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

– Fazia muito frio naquela escadaria…

– Mas estava quente o domingo

– Não – estava frio – é que ela estava sentada, dois degraus acima, me olhando. A morte exala frio. Mas liberta do pior. Ah, sim, para pessoas como eu, para os filhos da Praça da Sé, para os que vivem e morrem nas escadarias da casa de Deus ela liberta do pior.

– E agora quero conhecer coisas – te disse: tudo o que fazia era procurar o que comer, fugir das pancadas e da chuva. Agora soube que há tantas outras coisas – o mar e barquinhos para se andar em cima. Também me disseram que há músicas que te fazem chorar de tão bonitas, e fileiras de palavras que te dizem o que procurar na vida, te dizem coisas que não cabem em livros inteiros. Chamam-se poesias esses quadradinhos de palavras. Mas vamos, sei que você estava numa festa naquele sábado, dia antes de nosso encontro, e agora sei que festas são lugares onde as pessoas comem, e quando termina a fome voltam a comer. Bebem e quando termina a sede voltam a beber. Falam o tempo todo, falam muito alto e não me ouvem chorar na Praça, quando chove e eu estou com fome e frio. Suas comidas não são de alimentar, são de saborear.

O aviãozinho continuava a rodar. Ela pegou no meu braço

– Tenho que ir embora. Mas quero te dizer uma coisa

– Sim?

– A ambulância veio e me levou ao hospital – depois, quando saí da neblina fiquei sabendo que você tinha voltado para me ver. Soube que iria me comprar um sanduíche e uma caixa de suco de frutas. Isso mesmo eu estava errada em não acreditar. Se a ambulância não tivesse chegado teria te visto outra vez e sabe o que iria acontecer?

– O que?

– Minha mão não conseguiria segurar o sanduíche e ele iria rolar pela escada. Você o recomporia, me o traria outra vez e pegaria na minha mão, assim:

Ela pegou a minha mão entre as suas – e desapareceu. 

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