Todas as noites meu cachorro e eu fazemos nossos quarenta minutos de caminhada. A hora varia entre sete e nove da noite, mas já nos arriscamos ali pelas dez, o que significa que a rua está quase deserta.
Esse vazio – é o corolário de morar num país onde não se anda a pé por várias razões, preguiça, civilização das quatro rodas e mormente o medo dos outro. A esse respeito, num desses passeios assisti a um casal aguardar a chegada do guarda noturno em sua moto (chamado pelo celular), para só então abrir o portão de casa e entrar no carro que estava estacionado a apenas uns dez metros. Em outra ocasião, em casa agora, uma visita entrou em orgasmo (não aquele legal) nervoso por medo, pois às dez da noite um carro tinha parado em frente de nosso portão mantendo o motor aceso. Certamente o motorista parou para olhar no celular, mas a visita era paulistana, portanto desculpemo-la.
Voltando a nossos passeios noturnos, sempre cruzamos apenas com carros e muitas motos, essas levando pizzas e afins, e uns poucos ônibus urbanos, com pouquíssimos passageiros, imóveis como estátuas. Aparentemente, ninguém se conhece nesses buses. Mas uma noite vimos um, vazio, com as luzes completamente apagadas e apenas com os faroletes externos. Passou lento soturno e foi impossível não fantasiar que o homenzinho curvado sobre o volante se chamasse Caronte, dirigindo rumo ao mundo dos mortos. O letreiro dizia ‘Garage’, mas eu lia “Estige / Aquaronte”. Mas uns meses depois, estávamos perto do Natal, fomos surpreendidos, meu cão e eu, por um ônibus decorado com luzes multicoloridas que seguiam todo seu perfil e o das janelas. Poucos passageiros, mas pareciam conversar animadamente entre si. Desta vez foi impossível não imaginar que o ônibus, matéria inanimada, feito de aço, alumínio, vidro e borracha tivesse alma, uma alma boa e alegre.
Em uma dessas noites cruzei com um conhecido e conversamos um pouco; depois de umas banalidades sobre o tempo e o governo ele perguntou o nome do meu cachorro, que fremia para recomeçar o passeio
– Billy
– Ah, Billy, sim. Legal, bonzinho ele, né? Mas você é muito paciente, estava vendo vossa caminhada e ele parou um monte de vezes, nos postes, nas touceiras dessas calçadas quebradas. Eu daria um puxão na guia e tocaria em frente!
– Mas vem cá; se você está num museu, o Louvre por exemplo, passa correndo na frente dos quadros? Não para em frente da Mona Lisa? – sim eu sei, hoje não dá nem pra andar direito no Louvre, quanto mais parar em frente àquele sorriso maroto, mas vamos supor.
– Paro
– E o Billy faz o mesmo, só que seus olhos são seu nariz, e dos cheiros da rua ele retira uma quantidade de informações e de impressões que rivalizam com as do Louvre. Uma sinfonia de cheiros, eu diria. Afinal, ele tem mais de cem milhões de células odoríferas. Você tem cinco.
O meu conhecido, certamente não o tipo de frequentar museus se foi, algo desanimado por descobrir que tem apenas cinco milhões de células odoríferas.
Mas há outros encontros: por exemplo, uma noite saímos mais tarde do costumeiro – poucas motos e carros, um silêncio tranquilo. De longe uma figura vinha em nossa direção e aos poucos um som baixo mas crescente se fazia ouvir. A princípio pensei que a mulher – pois era uma mulher – estivesse falando sozinha. Mas não, eram duas as pessoas, ela e mais uma criança nos braços, meio que apoiada sobre o seu ombro. Sim, era a criança quem cantava alegremente. Viraram a esquina antes de cruzar comigo e se afastaram. A criança continuava a cantarolar no silencio daquela noite até que os dois desapareceram na alameda escura.