Automóveis europeus dos anos ´50: livres de cromados e asas, mecanicamente inteligentes, sóbrios e ajuizados

Em contraste com os autos dos Estados Unidos, os europeus se notabilizam pela mecânica apurada e inovadora, dimensões ditadas pelo bom senso e estética bem cuidada. São dados alguns exemplos de automóveis que fizeram época nos anos ´50, em sua maioria destinados à classe média e aos trabalhadores, sublinhando que fatores culturais tiveram papel importante no estilo e soluções mecânicas dos automóveis europeus

As diferenças entre as sociedades americana e europeia se refletem também na aparência e substância de seus automóveis. Como vimos em post anterior , nos anos cinquenta os automóveis americanos combinavam músculos (na mecânica) com extremo mau gosto (nas formas), e eram uma consequência da afluência que os Estados Unidos atravessavam e da importância social que os indivíduos davam a esta afluência. Sabe-se que prosperidade extrema amortece a sensibilidade e incentiva o exibicionismo, daí a relação entre automóvel e sociedade. Evidente que outras variáveis ditam a feição da indústria automobilística de um país: economia, nível tecnológico/industrial, etc., mas as preferências do consumidor são um condicionante importante.  

Vamos aqui repetir o jogo, mas com a Europa, excluindo os autos esporte e focando em carros de todos os dias. O tempo é novamente os anos cinquenta, mas também daremos uma breve passagem pela primeira metade do século XX, iniciando nos anos ´20 época parecida com a Americana: ‘old money’, gente acostumada ao luxo – autos com preços altíssimos, joias para poucos, e muita pobreza.

Rolls-Royce Phanton I, 1920. Notar o toque classista de separar o motorista (uniformizado e com quepe) dos passageiros. O segundo é um Bugatti Royale 1930 – motor com 12,7 litros e 300 HP.

Que o automóvel fosse uma espécie de joia o demonstra um peculiar costume da época: os ‘Concursos de Elegância para Automóveis’, especialmente na Itália ‘bem’ do anos ´30. Eram tempos em que chassis e carroceria podiam vir separados; comprava-se o chassis e encomendava-se a carroceria a algum “carrozziere” famoso: nomes como Ghia, Pinin Farina, Zagato, muitos dos quais sobrevivem até hoje. Eram os ‘fora de série’, personalíssimos e caríssimos, feitos à mão e às vezes em um único exemplar. Esses concursos eram como desfiles de moda, por exemplo naquele realizado em Genova, 1933: “…esse prêmio foi conquistado com a Lancia carroceria Pinin Farina, da senhora Firpo Josette Mercelle” – o nome do proprietário vinha sempre junto ao do carro, como se esse fosse um cavalo vencedor; enfim eram encontros destinados ao topo da pirâmide social.

Os anos 1922 e 1933 viram a subida ao poder dos regimes fascista na Italia e nazista na Alemanha. Esses dois governos totalitários perceberam – e ao mesmo tempo – o poder da expressão latina: pão e circo. O circo consistia, entre outras coisas, na proposta de uma nova classe de automóveis, pequenos, baratos e econômicos, que deveriam abrir ao povo as novas e grandes estradas que os regimes estavam construindo. Na Alemanha o VW, que devia se chamar KDF-Wagen, e do qual foi falado bastante em um post anterior. Na Italia a Fiat apresenta o Fiat 500, um pequeno carro para duas pessoas. Ambos os carros foram impostos de cima para baixo- não foram ditados pela moda ou por estudos de marketing. No entanto agradaram, pois o Fiat 500 foi produzido entre 1936 – 1949, modernizado em 1949 e vendido até 1955. O VW Beetle, Fusca para nós, existiu de1937a 2003 praticamente imutado, com 21,5 Mi de unidades produzidas. Atravessaram décadas com pouquíssimas alterações visíveis, mas a cada par de anos recebiam pequenos melhoramentos ditados pelo bom senso.  

Fiat 500 A, o famoso Topolino. Quatro cilindros, 16 HP, não necessitava de bomba de gasolina (esta descia por gravidade do tanque) e nem de bomba d´água para o radiador (utilizava o princípio da convecção natural: a água quente sobe a fria desce).

Assim, às vésperas da 2a ­Guerra as indústrias automobilísticas dos Estados Unidos e da Europa apresentavam grandes diferenças. Na Europa o fosso entre classes sociais é fundo e persistente, e com isso Rolls-Royce, Bentley, Isotta-Fraschini, Delage, Hispano-suiza e tantos outros, continuavam a dividir as ruas com os utilitários. Do outro lado do Atlântico, os pequenos não eram tão pequenos assim: Ford Modelo A ou Chevrolet AD, e eram esses que rodavam ao lado dos grandes carros que conduziam a nova aristocracia americana, a do dinheiro.  

A IIa guerra foi o grande divisor de águas. A Europa tornou-se pobre; fábricas destruídas e automóveis quase inexistentes. Em contracorrente os Estados Unidos experimentaram um aumento de riqueza, aliada a um parque industrial intocado pela guerra. E com o final da década de ´40 as visões de vida dos dois continentes acentuaram suas diferenças e moldaram suas respectivas indústrias automobilísticas. O exibicionismo americano continuava a privilegiar mamutes de mais de 2 toneladas e seu individualismo a instava a ignorar poluição e gasto excessivo de recursos naturais, até que os choques do petróleo de 1973 e 1975 obrigaram sua indústria a mudanças apressadas, nem todas bem sucedidas. Na Europa, senso de igualdade, justiça social, moderação, valorização de áreas públicas e aversão à competividade desenfreada levaram a Indústria a caminhos diferentes: inovações mecânicas, economia de combustível, formas sóbrias, funcionais, e esteticamente agradáveis. Aliás, na Europa o amor às belas formas é quase uma obrigação de quem vive rodeado de joias arquitetônicas… Comum a toda a Indústria é a manutenção das formas, ano após ano, ao contrário do que ocorria além oceano Atlântico, pois na Europa não havia os Joneses para impressionar. Um exemplo dessa tendência é dado pelo elegante Citroen 11 Légére, fabricado entre 1937 e 1957 com formas imutadas. Quando mudou, não foi apenas acrescentando uns cromados nem aumentando a altura de rabos-de-peixe; o fez de modo radical, com o DS19 (1955 – 1975 com somente uma pequena modificação no período). Ambos em seu tempo foram revolucionários em formas e mecânica. A França dessa época se notabilizava pela coragem e inventividade de seus carros – lembremos do Citroen 2 CV, simplíssimo, barato e funcional, ou do avançado Dyna Panhard 1953. 

 Dois Citroen: o 11 Lègère e o moderno DS19. Um e outro em produção por 20 anos sem alterações visíveis. O revolucionário estava sob a pele: tração dianteira, suspensão independente (hidropneumática no DS19) e carroceria monobloco.

Por incrível que pareça, em 1946 a Alemanha já estava fabricando automóveis. Daí em diante a história pertence à Volkswagen – a estrela do Milagre Econômico Alemão – e aos Mercedes, BMW e Audi, além de um exército de microcarros fadados a um rápido desaparecimento.

A Inglaterra com seu sistema de classes sociais exibia a mais hibrida indústria da Europa: permanência de autos hiper luxuosos como Rolls, Bentley,  Jaguar, Daimler, Lenchster, ao lado de carros mais que convencionais – senão medíocres – dedicados à classe média: Standard Vanguard, Prefect, Austin e outros.  

Prefect 1950 (30 HP) e Triumph Mayflower 1949-1953 (51HP) – um carro feito com serra!

Por fim, para sublinhar a clara diferença entre a Indústria americana e europeia, transcrevo aqui um trecho de uma reportagem, extraída da revista Auto Italiana, de novembro 1946:

Não podemos negar que hoje se encontrem vários automóveis estrangeiros: de funcionários civis e militares aliados [Nota: especialmente americanos e ingleses, pois a IIa Guerra havia recém-terminado]; automóveis de homens de negócios vindos de todas as partes do mundo, autos com chapa CD, mas nem todos bonitos, e não é sem orgulho que podemos afirmar que os melhores são italianos. De modo mais concreto podemos dizer que quando vemos passar um desses enormes autos estrangeiros, que parecem vagões ferroviários reluzentes de tintas e cromados, com silhuetas que não se entende se atendem a uma real exigência aerodinâmica ou se ao desejo de impressionar com a dimensão do conjunto, os admiramos e imaginamos o grande conforto que esses carros podem proporcionar. Finda a admiração, porém, é natural pensar se vale a pena toda essa vastidão para conseguir um objetivo alcançável com dimensões talvez mais modestas, mas também mais graciosas.

E isso foi escrito em 1946; imagine se o repórter visse os carros da década seguinte!

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