A vida de seis amigos é seguida desde a escola primária até a maturidade e a velhice, com uma técnica que segue suas vozes interiores e – como é típico de Virginia Woolf – sem uma trama definida.
Em algum post anterior (Os prazeres … do texto) falei de Alain de Botton, um esperto escritor suíço que sabe colher temas complexos que interessam a muitos, e os reduz a páginas preenchidas com palavreado simples e claro. No tal post falei de alguns escritores, com Proust entre eles, e para introduzir o de Botton citei seu livro “Como Proust pode mudar sua vida”.
O título é inteligente e atraente embora algo otimista; em apenas 222 páginas da edição em português – Editora Intrínseca (repararam com quantos escritores de determinado gênero se colocam esse alvo – 200 páginas?), o autor nos diz que lendo Proust aprendemos a ter um monte de amigos, recebemos lições para sermos felizes, aprendemos a expressar nossas emoções, a sofrer com sucesso (!), a sermos felizes no amor, a amar a vida hoje, e por que não devemos ler livros demais – (deve ser que por que não dá tempo de praticar o que ensinam!) Esses são alguns títulos dos capítulos do livro, e é dessa forma que Alain consegue extrair da monumental ‘Busca do tempo perdido’ essas lições de vida, como se viessem diretamente de seu imortal autor.
Mas lendo aqui e ali, descobrem-se outros autores, que talvez em grau menor que Proust (e menos páginas …) “podem mudar sua vida”. Não são muitos e encontros fatais dependem de tantas coisas: nossa estação na vida, a disponibilidade de um lugar tranquilo para ler, a bagagem existencial e muitas vezes paciência frente a abstrusos mas preciosos textos. Um dos nomes dentre esses que que “podem mudar sua vida” está Virginia Woolf.

Virginia Woolf quando jovem
Virginia Woolf (1882 – 1941) foi a quintessência do espírito britânico como pessoa e como escritora. Sua escrita negligencia tramas e centra-se sobre os personagens, muito mais sobre o que eles pensam do que sobre o que falam. É o tal “fluxo de consciência”, que vimos, por exemplo em Proust, e em Joyce (este que sempre tive pouca vontade de ler – há antipatias e simpatias inexplicáveis) e que é por ela praticado à exaustão. Entre períodos de sanidade e de instabilidade mental Virginia escreveu oito romances e inúmeros ensaios, alguns famosamente feministas como ‘Um quarto todo seu’. Em 1941, receosa de não conseguir se recuperar de seus demônios da loucura ele se suicida mergulhando no rio Ouze.

O rio Ouze, muito próximo da casa de Virginia, em Rodmell – Sussex
Seus livros são todos difíceis – o que não surpreende se lembrarmos que mantém a história ao mínimo, substituída que é pelo fio dos pensamentos dos personagens. Pensamentos são sempre desordenados quando expressam desejos, lembranças, frustações, receios e arrependimentos, e desordenado é segui-los em livro.
Então, ‘As ondas’ segue os pensamentos de seis personagens: Bernard, Louis, Neville, Susan, Jinny e Rhoda ao longo de suas vidas. Há um sétimo – Percival – que é uma ausência mas que está na mente de todos, que o admiram como a um personagem heroico que deve ser seguido, imitado.
Quando Virginia terminou o texto das ‘Ondas’ o mostrou a seu marido, Leonard Woolf, que o considerou uma ‘obra prima, o melhor de seus livros’ (estávamos em 1931, e era seu sexto), mas ao mesmo tempo confessou que as primeiras 100 páginas eram extremamente difíceis de ler e provavelmente fora das possibilidades do leitor comum. No entanto até o leitor comum, mesmo que enredado e confuso pela não-linearidade da “não-trama”, vai absorvendo uma espécie de energia vital na descrição dos lugares e dos diálogos internos dos personagens, e corajosamente continua a leitura. A crítica é unânime em considerar a escrita das ‘Ondas’ mais próxima da poesia do que da prosa, e sabemos que a primeira tem a capacidade de comunicar sentimentos e sensações de modo muito mais completo que a segunda, superando a barreira da pobreza e inadequação das palavras. Enfim, os textos de Virginia Woolf são “sentidos” mais do que “entendidos”.
Os seis personagens conhecem-se desde a infância; continuam em vago contato um com o outro em encontros raros que acompanham suas vidas, passam pela escola, universidade, trabalho, meia-idade e chegam à velhice.

Talvez fossem assim os reencontros dos seis amigos
A internet está cheia de excelente analises dos personagens das ‘Ondas’’ e aqui vou me limitar às minhas impressões – certamente incompletas e limitadas – começando por Louis, talvez o mais transparente dos seis. Ele deve ser entendido no contexto da esnobe sociedade britânica, que rotula as pessoas pelo acento e origem. Louis é Australiano, seu pai é banqueiro em Brisbane (e ele repete isso, como um sinal de inferioridade – um trabalhador, não um aristocrata!) e seu acento denuncia tudo isso. Com o tempo Louis torna-se um rico homem de negócios, embora mantendo as ambições literárias da juventude. Torna-se amante de Rhoda, não sabemos por quanto tempo; parece satisfeito com seu sucesso social e financeiro, mas guarda resquícios de seu senso de inferioridade.
Neville é o artista do grupo – um poeta mas não se entende se encontrou sucesso. Vive modestamente, é homossexual e parece ter amado Percival. Este, ainda jovem fora buscar glória e fortuna na Índia; morreu num acidente e deixou um vazio na vida dos seis. Finalmente Bernard, o personagem mais articulado e o que mais entende e descreve os outros. Casa-se e tem filhos, mas sua ambição é escrever, dominar a linguagem, mas nisso é inseguro e é assim que media suas relações com o mundo.
Das mulheres Susan é a mais convencional – aparentemente – ela também casa-se, tem filhos, vive no interior mas deixa-se levar pelas lembranças e no final do livro diz sentir-se como ‘um jovem pássaro, insatisfeito por algo que me escapa, que não entendo’. Ela parece ser menos complexa do que Rhoda, que em qualquer lugar sente sua inadequação, mesmo quando entre os cinco amigos que a acompanham desde a infância. De seu caso com Louis pouco se fala. O mundo lhe parece hostil e Rhoda passa sua vida a se esconder dele, até que o anula com seu suicídio. Jinny é linear: usa sua beleza para atrair os homens ‘com um gesto’, é a menos introspectiva do grupo pois sua vida social não lhe dá tempo para refletir, nem mesmo sobre a fragilidade temporal de sua beleza.
O final do livro pertence a Bernard – ele mostra como os outros tem a recordação de Percival como ponto de convergência e como se esforçam para ver com clareza o mundo em que vivem, a ponto de querer deixa-lo como fez Rhoda, ou aproveitá-lo ao máximo como faz Jinny.
‘As Ondas’ é dividido em nove seções ou capítulos, cada um aberto por uma página em itálico contendo o efeito da passagem do dia – do crepúsculo até a noite – nos jardins, nas casas e no mar. O fio condutor é a ação da luz sobre as coisas, luz incerta no início, dominante ao meio-dia e esmaecida ao crepúsculo. A alternância luz-sombra cobre o mar, especialmente em seu encontro com a praia e lhe muda as cores e intensidade no decorrer das horas; entra pelas janelas da casa e demora-se sobre os móveis, talheres e baixelas. As sombras prevalecem no início do dia, são expulsas para ângulos remotos dos quartos e salas e no fim do dia retornam envolvendo as casas, por dentro e por fora, subindo pelas encostas até alcançar os picos nevados. O texto é fechado por uma frase – também em itálico – contendo apenas quatro palavras: ‘as ondas quebram na praia’. O movimento de vai e vem das ondas é retomado várias vezes no texto sugerindo o ritmo da vida, a eternidade da natureza e a transitoriedade da vida humana.

