Não, não mate a barata – pode ser um outro Gregory!

Boa parte de nós segue religiosamente o que vai sob o nome de “moda”, e isso se estende a inúmeros campos: roupas, modo de falar, tipo de automóveis, arquitetura, etc. Moda também envolve a literatura pois – excetuando os clássicos, que falam de questões eternas – há escritores da moda e há os que passaram de moda. Muitos vencedores do Nobel pertencem à primeira categoria, mas tantos outros à segunda: quem hoje lê Olga Tokarczuk (2018), Camilo José Cela (1989), Eyvind Johnson (1974), John Steimbeck (1962)? Claro que o Nobel não é garantia de qualidade e/ou popularidade literária, lembremos de Machado de Assis, Virginia Woolf ou mesmo Proust (muito falado e pouco lido, também com mais de 3 mil páginas!), W. Sebald, Kafka, Cervantes e quantos outros não Nobelizados!

Kafka é um caso especial; lembro que nos anos ´50 e ´60 era escritor muito falado e muito lido, principalmente depois da filmagem de O Processo (1962), livro que é uma metáfora da angústia do viver entre arbitrariedades e sentimento de culpa sem causa.

O início de O Processo

Lembro também de A Colônia Penal, conto que protagoniza uma complexa máquina de tortura que um oficial mostra a um viajante, na verdade um inspetor que deve decidir sobre a continuidade ou não de seu uso. Para agrada-lo o oficial passa a demostrar sobre si mesmo o funcionamento da máquina, mas essa enlouquece e o despedaça. No conto há ecos do Processo, especialmente as questões da culpa e da justiça. No entanto, A Colônia insere-se em temas atuais e tão diversos como a emergência de “superinteligências” artificiais que possam assumir o controle do mundo à medida que se tornassem mais inteligentes que os humanos (Alan Turing) e a desumana situação prisional. Com sua visão profética Kafka consegue elevar a texto clássico um pequeno conto.

A máquina de tortura sendo explicada

Mas sua obra mais conhecida é sem dúvida A Metamorfose”. Nela temos um Gregory Samsa, vendedor de tecidos de relativo sucesso, que ganha bem e sustenta sua família – pai, mãe e Grete, sua irmã. Certa manhã ele sente dificuldades para se levantar, seu corpo parece mudado, e ele percebe ter-se transformado num inseto – uma grande barata talvez? Kafka não especifica.

[…ao levantar um pouco a cabeça, divisou o arredondado ventre castanho dividido em duros segmentos arqueados, sobre o qual a colcha dificilmente mantinha a posição e estava a ponto de escorregar.]

A reação da assustada família é violentamente hostil; apenas Grete o trata com certa gentileza, o alimenta e limpa o quarto onde o inseto que é Gregory passa seus dias e noites. Lá ele recebe a visita diária da irmã (e ele esconde-se sob o sofá para não assustá-la) e atrás da porta tenta ouvir os que os familiares se dizem ao redor da mesa de jantar. Frequentemente conversam sobre a cessação dos proventos de Gregory – que naturalmente não pode continuar a trabalhar – o que acende queixas e ressentimento. Os familiares são obrigados a procurar um emprego e alugar quartos a pensionistas. Alguns incidentes convenceram Gregory que todos – inclusive a irmã (o que lhe causou muita tristeza) – passaram a ter nojo dele. Um dia resolveram tirar todos os móveis de seu quarto; “assim, num espaço livre ele andará com mais facilidade”. No decorrer do trabalho a mãe o vê e desmaia provocando a ira de Grete e do pai, que passa a agredir o inseto atirando-lhe maças uma das quais encrava-se em suas costas, ferindo-o. O pecado de Gregory fora ter deixado seu quarto e se mostrado, horrível como era.

Correm os dias, seu quarto começa a acumular móveis quebrados, trastes, papéis velhos, a lata de lixo da cozinha, e ele passa a ser alimentado com os restos da mesa da família. Uma empregada “alta e ossuda” o maltrata e ameaça. Uma noite ele é visto – sujo, desgrenhado e com uma ferida às costas – pela família e pelos pensionistas, que horrorizados anunciam que irão deixar os quartos piorando assim a situação econômica da casa. Abertamente, o pai sustenta que é chegada a hora de se livrar do Gregory e este, ouvindo essas palavras através da porta de seu quarto, humilhado e abandonado deixa-se morrer de inanição. A tal alta ossuda e desagradável empregada, sorrindo anuncia que já se livrou “daquilo”, o que a família recebe como uma libertação, embora Grete derrame umas poucas lágrimas.

[…empurrando com a vassoura o corpo inerte para um dos extremos do quarto.]

Naquele mesmo dia concederam-se um longo passeio no campo e passam a fazer planos para o futuro. Decidem mudar para uma nova casa, e pensam que tudo irá melhorar. Também reparam que Grete recobrou sua alegria e que se estava tornando em uma bonita moça com idade para casar.

O que Kafka pretende com essa história é nos dotar de uma ferramenta para abrir a “caixa preta” da condição humana. Os parafusos que devem ser retirados para olhar lá dentro podem ser classificados como segue:

Status, ética do trabalho e regras sociais: na própria manhã da transformação, percebendo o atraso de Gregory seu chefe vai até sua casa e o acusa de ser relapso e de não contar mais nada na empresa. No mundo tecnocrata de hoje o trabalho é deificado como enobrecedor, uma artimanha para prender o Homem a regimes de trabalho extremos e desnecessários, veja-se a resistência à proposta do fim da escala 6 por 1 e à associação de lazer com preguiça. A situação de Gregory é uma metáfora do perdedor, aquele que consideramos como nosso inferior por ter menos dinheiro, por estar desempregado e ser débil e inadaptado à luta do mundo de hoje.

A família: considerada um núcleo virtuoso unido por laços de sangue e de amor é em muitos casos sufocante e cheio de tensões. A família é um microcosmo da sociedade burguesa, em cuja escala de valores os degraus são o dinheiro, a posição social, o poder. Ao ficar claro que Gregory não mais pode ser o provedor da família, ele é tratado como “coisa” a ser eliminada. Ainda, não são raros os grupos familiares que se fecham como ostras o que os faz ignorar as necessidades de quem lhes pede um pedaço de pão, e no “outro” veem apenas uma potencial ameaça. E também não são raras as relações internas em que a ausência ou incapacidade de comunicação agigantam episódios antigos, incompreensões e mal-entendidos, tornando a vida em comum um peso quando não uma tortura crônica. 

A diversidade: não pode haver metáfora mais clara do que as atitudes da família e dos três pensionistas, quando o inseto se lhes apresenta à vista. É uma metáfora da reação das “pessoas de bem” com os que ousam sair dos padrões burgueses: os LGBDT+, os progressistas, os que escolhem modos de vida alternativa, os indiferentes ao dinheiro e ás convenções sociais.

A velhice: estação da vida que encarna todas as fraquezas, é a transformação de Gregory em algo inútil, que depende dos outros. Não é raro ver em reuniões de família um componente mais velho isolado em um sofá. Depois das iniciais gentilezas de praxe, quase ninguém a ele se dirige – financeira e emocionalmente é um peso que não tem nada para oferecer senão lembranças que não interessam a ninguém.  

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Essa obra, – Metamorfose – lida, discutida e interpretada quase à exaustão em seu tempo, em minha opinião é hoje muito pouco lembrada, o que é surpreendente. Talvez isso seja por que entre hoje e os anos ´50 e ´60 a psicologia e a sociologia, fizeram grandes passos no entendimento de nós mesmos. Com a multiplicação e vasto alcance das vias de comunicação esses meios de entendimento de nossos problemas se aproximaram das pessoas de modo direto, porém mecânico – sem a aura da obra de arte literária, capaz de expressar os mesmos problemas via emoção.

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