Para quem gosta de ler há livros de todos os gêneros e tamanhos. É claro que as escolhas não são em base ao tamanho; são função do que nos interessa: ler um clássico, afinar nossa sensibilidade com um ou outro poema de uma antologia, informar-se dos desafios da AI, ler sobre economia ou simplesmente passar o tempo com um romance leve invés de estupidificar-se no celular.
Mas venhamos – frente a uma estante de livros o tamanho também entra em consideração. Não estou falando de casos extremos: Em Busca do Tempo Perdido tem (na minha edição) 3294 páginas e precisa de exclusividade pelo menos por um ano e meio. Outros clássicos são bem grandinhos: Dom Quixote 1111, Guerra e Paz 1425, e também de Tolstoy, Anna Karenina com 806 páginas. (novamente na minha edição).
As reações quando extraímos das estantes da livraria um desses tijolos, são de dois tipos: – Ah, esse livro deve conter todo o conhecimento humano – vai me transmitir experiências de vida que eu nunca poderia viver. A outra reação é: – o compraria apenas se estivesse de cama com uma perna quebrada.
Sim, tudo isso é verdade, os livros massudos debulham com método e arte as grandes verdades da vida; necessitam de paciência e tempo, porém.
Esse trânsito pela verdade, conhecimento e autodescoberta também pode ser feito a bordo de livros pequenos, em que a rapidez de leitura não se choca com sua profundidade de intenções – que se fixam em nossa estrutura de pensamento e emoções, que é o que um bom livro faz. Um exemplo clássico: A Dama do Cachorrinho.

“Comentava-se que na avenida beira-mar tinha surgido uma cara nova: uma dama com um cachorrinho”.
Anton Tchekhov escreveu a Dama em 1899. É um conto de apenas vinte páginas; uma história bastante simples que olhada sem óculos consiste no encontro de duas pessoas muito diferentes: Ele, Dmitri Gurov tem quase quarenta anos, é um moscovita, com um olho para o sexo oposto. Hoje trabalha num banco, mas não é um árido burocrata indiferente à cultura; no passado interessou-se pelas artes e é formado em literatura. Ela, Anna Serguievna pouco mais de vinte, é elegante, razoavelmente bonita mas mostra a provincial que é. Ambos são casados, e a história configura-se assim como um adultério. No entanto, olhada com óculos de grau ou mesmo lente de aumento A Dama transcende essa simplicidade banal e revela profundezas inesperadas.
Os protagonistas estão veraneando em Yalta (uma espécie de refinada Guarujá, como era nos anos ´50) e em pouco tempo Gurov seduz a tímida Anna, que reage com uma crise de arrependimento jugando ter-se tornado uma mulher perdida. As férias terminam, ela volta à sua província, ele volta ao seu trabalho, família e amigos ricos. A história acompanha Gurov em Moscou – casa burguesa, esposa afetada e pernóstica que se dá ares de intelectual (diz “Dimitri”, invés do mais comum Dmtri, por ser aquele mais elegante e afim ao original grego – Demetrius!). Gurov não a ama, entedia-se com ela e com os filhos, e igualmente com seus amigos do clube. Aos poucos seu pensamento corre até Yalta e termina por ir procurar Anna em sua provincial Saratov. A partir daí estabelece-se uma ligação profunda e Anna passa a viajar esporadicamente a Moscou para breves encontros com Gurov, mas sem a perspectiva de juntarem suas vidas em definitivo.

Seu primeiro passeio.
Essa a trama do conto; simples e livre de dramáticos/melodramáticos eventos, se excetuarmos a lamentação chorosa de Anna na primeira noite com Gurov. Na ocasião o comportamento deste está em linha com seu espírito de conquistador egoísta: no aguardo que sequem as lágrimas, displicentemente fatia um melão encontrado na mesa do quarto, e com frias palavras de circunstância que pede que ela se acalme – nós não sabemos ainda que essas são as últimas manifestações do volúvel Don Juan.
Ainda é noite no quarto de hotel de Anna, e para encerrar a para ele entediante cena de auto degradação da jovem, Gurov a convida para ver o nascer do sol em Oruanda uma vila próxima a Yalta. Ali, frente à natureza que lentamente desperta, com o céu tingindo-se de cores e o mar chocando-se com os rochedos, Gurov inicia sua jornada rumo a Anna como pessoa – sua presença e o espetáculo da natureza lhe inspiram pensamentos como:
… Assim devia ter sido quando não havia nem Yalta nem Oreanda; assim soa hoje e irá soar indiferente e monotonamente quando não existirmos mais. E nessa constância, nessa total indiferença à vida e morte de cada um de nós, está escondida, talvez, a garantia de nossa salvação eterna, do incessante movimento da vida sobre a terra, do incessante progresso para a perfeição.

Nascer do dia em Oreanda.
Tchekhov aqui utiliza o personagem como veículo para um de seus conceitos mais importantes, e que perpassa toda sua obra: que o mundo um dia vai se tornar justo e perfeito, e se ainda não o é, nós seres humanos somos a causa. Também há aí uma referência à nossa mortalidade, anunciada pelo envelhecimento, tema que vai mais tarde preocupar Gurov.
As férias de Yalta tem fim e Gurov retorna à sua Moscou pensando retomar sua vida, trabalho, aventuras. Mas um deslocamento interno se faz sentir, aos poucos a figura de Anna lhe toma os pensamentos e lhe faz pesar a companhia de seus amigos cujo materialismo grosseiro se choca com sua recém adquirida sensibilidade. Para aliviar a tensão entre sua vida interior e a exterior tenta compartilhar a primeira com um ou outro amigo, mas incompreensões e vulgaridades o fazem recolher-se em si mesmo. Tchekhov retoma o tema da caminhada à perfeição – Gurov, que ainda está no início desta está se tornando uma pessoa melhor. Várias são as manifestações disso – em Yalta, no início de seu caso agia furtivamente como um típico Don Juan adúltero; no fim agia mais livremente, transferindo Anna da posição de conquista para a de amante quase companheira. As contradições entre a vida interior e a exterior de Gurov se acentuam até que ele decide ir a Saratov; por um golpe de sorte encontra Anna cuja simetria de sentimentos a impele à promessa de ir vê-lo em Moscou.
E esses encontros se sucedem, quebrando longas ausências, e deixando-os tão insatisfeitos como antes. Na sociedade russa de então, o divórcio era ato impensável e eles não viam saída para sua situação. Gurov surpreende-se ao ver seus primeiros cabelos brancos, indicando que era tarde demais, que deviam ter-se encontrado muito antes. Aí, como em todo o conto há uma boa dose de sentimento, que porém não resvala em sentimentalismo; é contido e lógico em sua descrição desses momentos de tristeza. No entanto Tchekhov nos deixa um fio de esperança – o conto termina com Gurov e Anna pensando em soluções: “…e parecia que mais um pouquinho uma solução seria encontrada e então uma nova vida começaria, uma vida maravilhosa; porém para ambos estava claro que ainda estava muito longe o fim e que o mais complicado e difícil estava apenas começando”.
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A Dama do Cachorrinho foi filmado, e com a requintada fotografia que caracteriza o cinema russo. Rodado em 1960 segue ipsis litteris os diálogos e refaz fielmente todos os eventos da trama. Apesar de as linguagens da literatura e do cinema serem muito diferentes, o segundo dá vida à primeira surpreendentemente bem. Recebeu elogios de nada menos que Jean-Luc Godard.
OBS: todas as figuras são do filme, exceto a foto de A. Tchekhov.
Há um outro filme, Brief Encounter (mal traduzido como Desencanto), dirigido por David Lean. Retrata uma espécie de Gurov-Anna modernos – isso relativamente falando; o filme é de 1945! É nominalmente baseado em uma peça de Noel Coward, mas para mim este a copiou de Tchekhov. Moscou e Saratov são substituídas por duas cidades inglesas, e os encontros são no café da estação da ferrovia que as liga. O verdadeiro protagonista é o trem, o monstro fumegante que inexorável os divide. Em branco e preto, no estilo de filme noir, é excelente.

A estação de…
Em 1974 foi rodada uma recriação franco-italiana do Desencanto, com Sofia Loren e Richard Burton. Absolutamente horrível!
