Oppenhaimer e companheiros

Um recente filme colocou o Projeto Manhattan no imaginário de muitos, ainda mais por ter ganho o Oscar em 2023 – evento que segundo alguns lhe garante excelência. Eu o assisti no streaming, em todas as suas três longas horas e seus extremos de didatismo; é a história do Projeto Manhattan, desenvolvido na localidade de Los Alamos na década de ´40 e que resultou na produção da bomba atômica, lançada em 1945 sobre duas cidades japonesas. O filme gira em torno da pessoa de Robert Oppenhaimer, o diretor do projeto, apresentado como um ser torturado entre os extremos da ambição e poder e o inferno da culpa. É recheado de lugares comuns e sua tônica é a luta entre o bem e o mal, eterno maniqueísmo que ainda hoje move alguns dos poderosos do mundo.

Supostamente Oppenhaimer é um gênio, uma mistura de Einstein com Buda; cita poemas orientais, lê sânscrito, aprende holandês em um mês para proferir palestras em Amsterdam, etc. etc. Isto soa mais espetacular ainda quando sabemos da profunda divisão entre ciências físicas e a área de humanas, tema explorado no famoso As duas culturas de CP Snow. Essa divisão o autor atribui à extrema especialização da educação moderna e diz que sua superação contribuiria para a solução de problemas globais – pobreza e avanços tecnológicos. A isso acrescento que cultura humanística, agregada a conhecimento científico também deveria ter potencial para temperar a desmedida ambição de poder que o conhecimento instila em algumas pessoas. Para Oppenhaimer essa agregação não parece ter tido nenhum efeito, além de memorizar línguas estranhas, apreciar arte abstrata e ruminar frases do Bhagavad-Gita – a joia do espiritualismo indiano – frases como “agora eu me tornei morte, destruidor de mundos” e outra que não lembro, no filme ridiculamente recitada num contexto sexual. Toda essa sabedoria não evitou que se tornasse mais o burocrata do que o cientista dos meios de provocar a morte de cerca de 200 mil pessoas em Horoshima e Nagasaki, (se não contarmos as posteriores vítimas da radiação).

Vista de Hiroshima, e fotografia, tirada 3 hs após a explosão da bomba – sobreviventes na Ponte Miyuki.

Mas uma vez lançadas as bombas, com Oppenhaimer alçado aos altares da fama, sua sabedoria oriental, amor à arte e à poesia parecem se reacender e ele passa a se opor à proliferação de armas nucleares, especialmente da bomba hidrogênio e a andar pela América proferindo discursos pacifistas, tipo monge Tibetano. Na América do imediato pós-guerra e anos ´50, qualqur coisa que tenha qualquer componente social era um ato de matriz comunista; essa foi a qualificação que Oppenhaimer ganhou naqueles anos e que o “canonizou” aos olhos dos espectadores do filme e aos leitores de suas muitas biografias. Diferentemente, eu penso tratar-se de um oportunista que só “despertou ao ver que o mundo se apercebeu de quão fundamentalmente imoral foi lançar bombas atômicas sobre cidades indefesas.

A premissa repetida como um mantra era: “o Japão não vai se render”, e que o fim da guerra salvaria “inúmeras vidas americanas”, Segundo os generais isso só seria possível com a aniquilação total do Japão, feito cuja viabilidade e imediatez seria mostrada pelas duas bombas atômicas.

Na realidade existem evidências do contrário: “…baseados em detalhadas investigações de todos os fatos e de testemunhos de líderes japoneses, a opinião do Relatório sobre a Guerra do Pacífico era que, certamente antes de 31 dezembro 1945 o Japão teria apresentado sua rendição mesmo que a bomba atômica não tivesse sido utilizada” (1). Além dessa premissa havia outra, que era o temor de a Alemanha estar a caminho de produzir sua bomba, total inverdade pois em 1944 foi verificado que não sabiam nem por onde começar.

Mas chega de falar do filme, onde os cientistas de Los Alamos são apresentados como jovens gênios trabalhando dia e noite para a salvação da pátria; na verdade havia vários personagens que de perto, mostravam um lado bem sombrio. Vamos ver alguns.

Esquema da “Little Boy”, lançada sobre Hiroshima

John Von Neumann foi considerado por ninguém menos que Einstein como “o homem mais inteligente do mundo”. Quando criança falava grego clássico em casa e podia dividir de cabeça números com 8 algarismos. Aos vinte já era considerado um gênio matemático. Desenvolveu o primeiro computador, o famoso ENIAC; é o inventor da “Teoria dos Jogos”, uma ferramenta matemática capaz de resolver problemas decisórios em que há objetivos conflitantes; deu bases matemáticas à Teoria dos Quantas e foi consultor em Los Alamos. Ainda, a chamada “arquitetura de Neumann” é a base do funcionamento dos computadores atuais. Meu interesse por Von Neumann fez com que eu comprasse o livro “O Maníaco”, de Benjamin Labatut, anunciado como um dos 10 melhores de 2014. Foi uma decepção; trata-se de uma coleção de depoimentos de cientistas que conheceram Von Neumann (inclusive biólogos, pois ele teve uma mão na descoberta da hélice do DNA). Um desses eu admirava muito – o físico americano Richard Feynman, que aos 25 anos foi contratado para o Projeto (os salários eram muito bons – um atrativo a mais para motivar os melhores cientistas). Mas lendo seu depoimento tive outra decepção: Feynman aparece como um boboca infantil que não se dava conta da gravidade do que estavam fazendo, incapaz de ir além de suas equações matemáticas. Se sua juventude à época pode desculpá-lo, sua mania de tocar bongô soa ridícula senão sinistra; no filme é o personagem empenhado em freneticamente tocar seu instrumento após o “sucesso” de Hiroshima.

E agora voltemos a John Von Neumann. Como consultor do Projeto ele era frequentemente chamado para resolver os “grandes problemas” – por exemplo, como selecionar matematicamente as cidades-alvo? Tarefa agradável, não é? Mas o problema mais complexo era: como iniciar a reação? Na prática esta ocorre pela liberação da enorme quantidade de energia gerada pela quebra dos átomos de um material fissionável – uranio ou plutônio, quebra essa provocada por um nêutron. Uma representação (não muito boa mas razoável) desse evento – a fissão – é dada por uma mesa de bilhar, com as bolas em seus lugares iniciais: numa extremidade as vermelhas – geralmente 15 – são dispostas formando um triângulo (o material fissionável). O jogo inicia com a bola branca (o nêutron) sendo arremessada contra o triângulo de vermelhas de modo a espalhá-las (a fissão).

A inóqua fissão que inicia uma partida de bilhar

 O problema entregue a Von Neumann era como disparar a fissão – e a solução foi genial e logo adotada na bomba de Nagasaki. No acima citado “O Maníaco” há a descrição de um Von Neumann que chega inesperadamente a Los Alamos entusiasmadíssimo com o resultado de seu modelo matemático do alcance da explosão. Em frente a uma lousa ele explica a Oppenhaimer e seus boquiabertos liderados que, se a explosão da bomba ocorresse a uma certa altura – 500 e tantos metros, e não no solo, o alcance da onda de choque seria muito maior e o número de mortes correspondentemente maior. Vai sem dizer que seu modelo matemático foi aplaudido entusiasticamente pela assistência, que perdera a capacidade de avaliar seu verdadeiro significado.

Temos também aqueles que não se satisfaziam com os kilotons da bomba A e queriam os megatons da bomba a hidrogênio, como Edward Teller, aliás ajudado por Von Neumann.

Por fim falta comentar o infantilizado mau gosto que permeava o Projeto Manhattan, desde o nome do avião lançador, o Enola Gay, nome da mãe do piloto, aos das bombas: Fat Man (Nagasaki – 60 – 80 mil mortos?) e Little Boy (Hiroshima – 90 – 166 mil mortos).

A 6 de agosto de 2014 são oitenta anos que a bomba A foi lançada sobre Hiroshima

(1)  Blackett, P.M.S. Studies of war, nuclear and conventional, Edinburgh, 1962.

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