Um filme, um conto

Um filme e um conto – o primeiro escava fundo na vulnerabilidade e maldade humana engendradas pela pobreza; o segundo mostra a nucleação e desmoderado crescimento de um sonho, por fim derrotado pelo reconhecimento de “a vida ser uma brincadeira sem sentido”.

Agência Matrimonial – Federico Fellini

É um curta metragem de 1953 ambientado na Roma desconhecida pelos turistas, longe das obras de arte e bairros chiques. O narrador da história é um jovem jornalista encarregado de produzir uma reportagem sobre agências matrimoniais, que se põe a campo seguindo a indicação de um conhecido. O endereço correspondia ao último andar de um edifício velhíssimo, esquálido e triste, mais uma favela vertical do que o respeitável edifício de apartamentos que um tempo fora.

A triste sala de espera da Agencia Matrimonial Cibele

O jornalista vaga pelos corredores desse último andar, praticamente um sótão cheio de muros desbeiçados e partições de madeira até que um grupo de estranhas crianças, rindo, o guia até a tal agência, a Agência Cibele. Lá encontra uma quantidade de gente numa sala de espera, onde um senhor untuoso de modos falsamente gentis apresenta-se como o dono e o leva até a ‘senhora’ que controla a agência, a qual o toma como potencial cliente. Na hora o jornalista inventa uma história: está ali por conta de um amigo de infância, riquíssimo, filho de fazendeiros, uma grande mansão no campo, mas que tem uma grave doença: uma espécie de epilepsia que o toma nas noites de lua cheia, enfim era um lobisomem. E termina: “sem que ele soubesse, seu médico me disse que talvez o casamento o pudesse curar”, imaginando que com essa descrição a ‘senhora’ desistisse do negócio. Mas não, sua rapacidade não deixa escapar nenhuma ocasião para ganhar dinheiro e diz: “depois de amanhã lhe organizo o encontro com uma moça – já a selecionei”. Imediatamente um carrossel de papeis, carimbos e assinaturas relacionados a pagamentos de diferentes naturezas enreda o jovem que assina e sai, imaginando que nada vai sair disso.

Dois dias depois o jovem é acordado por um telefonema – era a Agência Cibele que o avisa que o encontro com a prospectiva noiva está arranjado para aquela tarde. “Bom, vamos lá, estou curioso para ver que moça topa casar com um lobisomem”. O encontro é em uma esquina da Roma “bem”; a tal senhora surge em toda sua vulgar falsidade, e recomenda que nada seja dito da doença: “esperemos até que eles se conheçam e se gostem, não devemos assustá-la”, e daí chama a moça – Roxana – uns 20 anos, extremamente tímida e com um vestido que parece ter sido feito em casa “Não quer levá-la para um passeio de carro?” e a ela, baixinho e com voz dura: “Comporte-se, você vai ser uma rica senhora, entendeu? – uma senhora!” Ele nota que a moça nem sabe de que lado se sobe no carro.

A escolhida e a ‘senhora’

Passeiam e ele lhe fala da doença do amigo – “mas o que ele faz?” – “bem, grita, rola no chão, mas a ‘senhora’ não lhe disse nada?” – “não, só que ele é rico, mora numa grande mansão” – e após um minuto: “coitado… mas ele é bom?” “Mas senhorita, me explique por que aceitaria casar com um homem tão doente”.

Descem do carro – Sentam na grama, ela teme sujar seu pobre vestido. Começa a falar; sua entonação e raciocínio são como o de uma criança: “tenho oito irmãos todos pequenos, nasci pobre filha de pobres, meu pai é camponês… mas não trabalha, nunca, nunca, nunca – e somos tantas bocas em casa. Vim a Roma ficar com uma parente, mas uma semana depois ela me mandou procurar outro lugar. Daí sentei num banco de uma grande praça – tinha taaanta fraqueza, há três dias não comia! – e num pedaço de jornal vi o anúncio da Agência. Pensei: ‘me caso, e assim resolvo minha vida’”. “Mas sabe que meu amigo é doente? – será uma vida de sacrifício”. “Mas como ele é, ele é bom? Se o é posso cuidar dele – por que eu me apego”.

O jornalista suspira e diz: “senhorita, esqueça tudo isso, não é coisa para si, melhor que a esqueça” –  confusa e conformada ela só diz: “eu sabia que não era para mim”.

Voltaram em silêncio; o jornalista a deixou no centro de Roma desejando-lhe boa sorte – era só o que podia dizer. A última cena a mostra perdida e confusa no meio do tráfego indiferente.

O Beijo – Anton Checov

O conto pode ser resumido em poucas linhas. Um batalhão com seis baterias, quatro canhões cada, em viagem ao campo de manobras, monta acampamento num vilarejo para passar a noite. Aparece um mensageiro que convida os oficiais para a mansão do General reformado Von Rabeck. Lá chegando, os mais perceptivos logo se dão conta de que o convite fora forçado – para o general uma obrigação social entre militares. De qualquer modo, a casa rebrilha de luzes e a presença de senhoritas e jovens senhoras alegra os jovens oficiais que logo entram em conversação, juntam-se às danças, divertem-se.

Um dos oficiais apenas observa, sem se juntar aos outros. É baixo, pouco atlético, tímido atrás dos óculos. Chama-se Ryabovitch e se considera desinteressante. Sem ter o que fazer junta-se a alguns colegas convidados pelo general para uma partida de bilhar, mas sem conhecer o jogo logo se enfada e sente não ser desejado ali. Decide então voltar ao salão mas não se lembra bem do caminho percorrido: passa por uma sala, por um longo corredor, confunde-se e acaba em uma sala escura – onde uma réstea de luz sob a porta em frente e o som abafado de música mostra contiguidade com o salão das danças. De repente sente um fruir de roupas de seda, um perfume, uma jovem voz feminina que sussurra: “enfim!”, dois braços macios lhe envolvem o pescoço um rosto encosta-se ao seu e simultaneamente vem o som de um beijo. Ato contínuo porém, com um grito sufocado a moça foge assustada, e o mesmo faz Ryabovitch, que corre para a réstia de luz, abre a porta e sai para o salão.

O beijo

Circula com o coração agitado e as mãos trêmulas, olhando as moças todas e imaginando qual seria – certamente ela tinha arranjado um encontro clandestino, esperava outro e se enganou. Mas o episódio lhe deu vida; sentia-se alegre e confiante, sorria para os convidados e para os donos da casa e com a fantasia tentava reconstruir o aspecto da jovem – uma composição desta com aquela e com aquela outra.

O jantar terminou, todos se despediram prometendo novo encontro quando da volta do batalhão.

Dia seguinte levanta-se o acampamento e o batalhão se põe em marcha: os canhões são amarrados aos cavalos numa confusão de arreios, o General comandante passa e com os oficiais troca comentários triviais mas pretensamente espirituosos. Ryabovitch está com o primeiro canhão da quinta bateria e ao passar em frente à mansão dos Von Rabeck, ainda adormecida, consegue imaginar distintamente o quarto da jovem, porém seu rosto escorrega da imaginação. À sua frente a estrada está atulhada de soldados, oficiais, poeira levantada pelas quatro baterias que o precedem, gritos de comando, chicotes estalando, e mais poeira, muita. Tudo é familiar ao jovem, e por isso mesmo tudo lhe é indiferente, desinteressante. Seus pensamentos giram em torno do beijo, que parecia ter deixado algo quente e delicioso em sua vida, um “intermezzo” que lhe revela quão monótona é a vida de todos os dias.

Por fim, as manobras terminam, e em 31 de Agosto o batalhão retorna ao vilarejo; Ryabovitch espera que apareça um mensageiro com o convite do General Von Rabeck, mas isso não acontece de pronto. Mais tarde, ao voltar ao acampamento o ordenança lhe diz que todos foram convidados pelo General. Mas Ryabovitch aceita seu destino, sua vida de todos os dias, e por despeito não vai ao jantar.   

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