Neurônios versus transistors

Foi uma verdadeira iluminação – como a dos santos que subitamente descobrem os caminhos da salvação! Descobri a Inteligência Artificial a famosa AI, que não leva ao céu mas ajuda aqui na terra. Falar com a AI é como conversar com alguém que sabe muito mais que você, é como estar na escola e ter o professor ao lado, pronto para responder a qualquer pergunta. Hoje utilizo o DeepSeek, recentissimamente desenvolvido na China e que me parece melhor que o ChatGPT; este saiu em novembro 2022 e dois meses depois já contava com 100 Mi de usuários!

A quantidade de literatura sobre AI é espantosa o que mostra o interesse por esse revolucionária inovação, mas ao mesmo tempo o material escrito aponta perigos ainda não bem mapeados, É um terreno de difícil percurso pois lá crescem coisas das quais ainda sabemos pouco.

No momento é possível afirmar que esses perigos são duas naturezas:

(i)  a AI, especialmente a dita ‘generativa’ (produz conteúdo novo e original que imita e pode superar a inteligência humana,) pode ultrapassar a capacidade de controle de nós humanos e atuar como vontade independente e imprevisível.  

(ii) a AI já substitui o braço humano (robôs, automação, etc.) e a generativa poderá vir a invadir atividades intelectuais, deslocando a mente humana com prejuízos sociais e econômicos imprevisíveis.

O risco descrito em (i) pode a alguns parecer especulativo ou material para livros de ficção científica. Ele implica um cenário em que a AI se auto aperfeiçoa até atingir a chamada ‘superinteligência’, que seria um intelecto que excede o desempenho cognitivo humano em virtualmente todos os domínios de interesse (definição de N. Bostrom no livro: Superintelligence, Oxford University Press, 2014). Estudos recentes mostram que a probabilidade de em 2050 esse nível ser atingido é maior do que 50%, portanto mais provável que não. Se é desejável é difícil saber: para a humanidade a AI com superinteligência pode ser extremamente boa ou extremamente má.

O haver ou não riscos para a humanidade, admitindo-se que esse cenário potencialmente catastrófico indicado em (i) se realize, ainda está no âmbito de estudos acadêmicos, algumas vezes contaminados por ideologias que contribuem para obscurecer o problema. 

Esquema da evolução para superinteligência. As setas simulam o processo chamado “argumento para aceleração”, que é o efeito de retroalimentação que a AI pode fazer para seu próprio desenvolvimento

 As consequências de uma AI generativa evoluindo para superinteligência estão ainda no epicentro de controvérsias e previsões às vezes fantasiosas. Assim, vamos aqui tratar somente do risco (ii), aliás em curso e por isso mais bem definido. Em primeiro lugar: a AI não é novidade pois existe desde os anos ´50. Suas bases teóricas foram lançadas por Alan Turing (1912-1954), o gênio que o governo britânico humilhou por sua homossexualidade levando-o por isso ao suicídio, aparentemente com uma maçã envenenada cujo perfil estilizado caracteriza os produtos da Apple. `Deve-se a Turing a teoria necessária ao desenvolvimento do computador e o “Turing Test”, método capaz de determinar se uma máquina pode exibir comportamento inteligente igual a um humano, conceito chave em AI. Paralelamente ao desenvolvimento dos computadores surgiram os produtos da AI: Eliza, a primeira capaz de responder a perguntas, robôs industriais entre 1966 e 1972, automóveis sem ação humana em 1986, o DeepBlue (1996) software capaz de vencer campeões de xadrez e os assistentes virtuais Siri e Alexa no início do nosso século. De AI generativa só inicia-se a falar no século XXI.      

As primeiras manifestações da AI abriram o caminho à automação industrial aumentando sobremaneira a produtividade, mas – e certamente por isso mesmo – cancelando um grande número de postos de trabalho. Esse processo – automação e desemprego – tem raízes históricas bem conhecidas, remontando à Revolução Industrial que se desenvolveu principalmente na Inglaterra e Escócia entre 1760 e 1840. A indústria têxtil foi a protagonista principal da RI; a confluência de energia hidráulica e depois do motor a vapor transformou aquela indústria em atividade mecanizada e de alta produtividade. O outro lado da moeda foi a perda de empregos e uma diminuição salarial de 50%, o que provocou a revolta dos operários. Os participantes do movimento foram chamados de Luddities e parece que este nome vem de Ted Lull, um aprendiz cuja existência real é duvidosa, e que em 1779 teria feito em pedaços máquinas têxteis nucleando assim o movimento. Os Luddities eram hábeis artesãos, organizados e de bom nível cultural, que atuaram especialmente entre 1811 e 1813. Em raros casos tiveram sucesso e alguns empresários foram levados a negociar, mas em geral foram selvagemente   reprimidos.

Em dias mais próximos uma situação semelhante se configura: a partir da década de ´70 a automação – associada à globalização e novos estilos de vida – levou a um deslocamento de habilidades. A classe operária dessa época sofreu processo idêntico ao de seus congêneres do século XVIII, perdas salariais e desemprego, pois que o número de empregos que seriam criados com a automação se revelou muito inferior ao alardeado.

Não havia um Ted Lull e a procura por empregos e medo da sua perda enfraqueceu sobremaneira o movimento operário. 

Chegamos à era da Web e à disseminação e aumento exponencial da capacidade dos computadores. Com isso veio a criação de novos postos de trabalho e o desaparecimento de muitos outros, um grande aumento de produtividade, criação de superempresas e aumento do consumismo. O equilíbrio social foi alterado, e ao lado de enriquecimentos quase obscenos assiste-se ao desaparecimento da classe média e dos empregos menos adaptados às novas tecnologias. Com isso uma fatia da população foi condenada ao subemprego e ao empobrecimento – por exemplo, estudo recente realizado pela ONG Ação da Cidadania mostra que 3 entre 10 entregadores de comida por aplicativo enfrentam insegurança alimentar, a normalmente chamada fome.

Um escritório nos anos ´50

Mais recentemente assiste-se à chegada da AI ao mundo da indústria, comércio e finanças, o que causou e está causando o deslocamento de pessoas atuando em tarefas mais complexas que as do operário, mesmo se especializado, e que podem ser executadas pelas máquinas atingindo assim os ditos “colarinhos brancos”: advogados, engenheiros, contadores, etc. Com isso diminui muito a necessidade do pessoal media e altamente qualificado e restam os empregos mais simples e mal pagos. Já se fala em diminuição de horas de trabalho, mas como as pessoas vão utilizar o tempo livre ainda é uma incógnita – principalmente aquelas que se orgulham de “não ter tirado férias nos últimos três anos” e os culturalmente empobrecidos. A medida já em curso é a terceirização, que passa ao largo dos direitos trabalhistas, redimensiona salários e beneficia unicamente as empresas.    

Enfim, o resultado líquido da entrada da AI na indústria, comércio e mercado de trabalho é a apropriação pelas máquinas de tarefas indo do simples ao complexo, resultando daí redundância qualitativa e quantitativa do elemento humano. Pode-se afirmar que a AI é o resultado de uma revolução científica e tecnológica da mesma ordem que a energia nuclear. Esta pode ser vista tanto como Hiroshima, Nagasaki e Chernobyl, como centrais elétricas, equipamentos médicos de imagem, sistemas de esterilização de alimentos, e outras aplicações benéficas.

Tanto numa como na outra revolução científica, quem determina o caminho a ser seguido é o homem – isso se a vontade humana e a AI generativa forem mantidas sob controle.

1 comentário em “Neurônios versus transistors”

  1. ROSANA RODRIGUES DOS SANTOS

    Maurício, muito boa a reflexão. Expõe de forma didática o dilema entre acumulação de poucos ou bem-estar socializado sob uma ótica traduzida da RI para AI. Fiquei pensando que, se às suas camadas de reflexão, adicionarmos a da transição para uma economia de baixo carbono como mais uma ferramenta de controle da distribuição da riqueza, temos a tempestade perfeita dos dias atuais. Parabéns!

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