Houve um tempo em que cultura era a província dos ricos. Na verdade era uma cultura falsa: comprava-se livros para ornar as estantes (bem, algumas vezes eram realmente lidos), mandavam-se os filhos estudar na capital e voltar com um diploma. e Isso era suficiente. O objetivo real era diferenciar-se da massa – estou falando de tempos até a primeira metade do século XX – eles lá nós aqui cultos e lidos, temos sentimentos mais aguçados e delicados, através da literatura conhecemos o mundo e as pessoas melhor do que o ignorante, aquele que não lê, não estuda.
Em tempos mais próximos o mundo editorial aumentou exponencialmente, e romances, autoajuda, estudos críticos, poesia, ensaios, etc., viraram commodities – ora consumidas ora apenas exibidas. Hoje romances são os principais produtos literários: contam uma história e quando trata-se de clássicos ampliam o conhecimento do mundo e da nossa condição aqui na terra; quando modernos ajudam a passar o tempo. Livros de autoajuda prejudicam pois simplificam o que é malditamente complicado.
O que ultimamente ocorre é um aumento da complexidade de tudo isso; por exemplo, estudos em teoria literária hoje são só consumidos pelos experts, os que já sabem das coisas e se empanturram de teorias como gansos produtores de foie gras. No caso da teoria até que podemos entender que a complexidade serve para justificar carreiras acadêmicas, publicações, etc., afinal para que simplificar se podemos complicar? Complicada também é a física nuclear, a mecânica quântica, a química molecular e ninguém reclama, são jardins exclusivos dos especialistas e nós nos contentamos em utilizar as aplicações dessas teorias – ou fugir daquelas. Mas que a complexidade se estenda a romances não faz sentido, até percebermos que atua como os muros que alguns políticos querem erguer na fronteira com seu vizinho. Mais objetivamente, ela mantêm os “incultos” fora do jardim da cultura. Se muitos passarem a frequentar esse jardim vão pisar na grama, estragar as flores, jogar embalagens de sorvete, pipocas, batatas fritas, etc. etc.
Sabe-se que os produtos literários se dividem em duas grandes famílias: prosa e poesia. Esta tem diversas variantes: com rima e sem rima, com métrica ou sem. Às vezes as palavras são dispostas de modo a formar uma sequência ou um desenho – é a dita poesia concreta que tem a vantagem de ser simples demais, quando não simpaticamente bobinha.

Essa é poesia concreta – simpática!
Poesias não falam como nós, o fazem num plano diferente do nosso. Num post anterior (A janela e Maria José), do qual este quer ser uma continuação, eu trouxe uma penetrante observação do poeta e crítico Allen Grossmann, que aponta o conflito entre o desejo do poeta em construir um mundo alternativo e a resistência exercida pelo material que compõe o mundo – que é a linguagem. Enfim, ele diz que as palavras de que dispomos são pobremente insuficientes para dar forma aos sentimentos que a poesia pretende expressar melhor que a prosa. Daí o que se faz? – recorre-se a manipulações verbais, palavras difíceis, temas esotéricos, justaposições artificiais etc. etc. com o resultado de obscurecer o sentido do poema com essas tortuosidades.
Por exemplo, de dois poetas famosos (não importa quais):
… te caem os rios como aves / te cobrem os pistilos cor de incêndio / es avermelhado de madeiras …
ou então:
Filomela de azul metamorfoseada / o Poema se medita como um círculo medita seu centro / como os raios do círculo o meditam / fulcro de cristal do movimento.
Claro que lendo os poemas por inteiro e com cuidado (e interpretando um pouco…) algum sentido acabamos por encontrar. E não podemos negar que tenham certa beleza, as imagens e os encontros de palavras. Mas sente-se o esforço de transcender a linguagem em sua insuficiência (o problema de Alan Grossmann), o pavor do simples, este que em certos ambientes pode ser considerado banal, medíocre.
Mas vamos pensar nas imensas maiorias que tem pouca domesticidade com as letras. Os considerados ignorantes pelas elites intelectuais, que se esquecem que a literatura de cordel, os repentistas nordestinos, o ritmo (que é uma das características da poesia), tudo isso vem do povo, é parte de sua história, seus interesses e vocação. Basta pensar nas cantigas que se ouviam nas ruas e casebres dos camponeses da idade média. No entanto, a forma de arte chamada poesia foi apropriada por uma minoria elitista, que construiu sua igrejinha de complexidades. Repetindo: no fundo, como subproduto da cultura sobrevive a vontade de se distinguir dos que consideram ignorantes.

Literatura de cordel
Mas será que é sempre assim? Essa separação entre o erudito e o falar das ruas? Procurando vemos que não é sempre assim, há gente que escreve como se fala sem manipulações e artifícios com palavras reconduzíveis a emoções e fatos bem concretos – alguns exemplos:
1. Extraido de um poema completo:
Mas eu nem sempre quero ser feliz / É preciso ser de vez em quando infeliz / O que é preciso é ser-se natural e calmo / Na felicidade, ou infelicidade
Sim, palavras naturais e simples escritas há cerca de cem anos, mas urgentemente necessárias hoje quando as pessoas são tomadas pelo “consumismo da felicidade” – a obrigação de ser feliz – a ponto que seguem cursos para fugir da infelicidade, vista como um fracasso pessoal. Enfim, palavras que ensinam algo.
2. E outro exemplo:
Procuro dizer o que sinto / Sem pensar em que o sinto / Procuro encostar as palavras à ideia
Aqui não há elucubrações e fantasias inúteis, trata-se de “palavras próximas à ideia”, isto é, palavras que constroem um sentido, uma lógica.
È também possível contar histórias, simplesmente descrever momentos da vida, não limitados a quem escreve mas extensíveis às experiências do leitor. É o caso do poema “Aniversário”, do qual bastam três linhas para que o momento se faça quase visível, nítido e focado como num filme:
3. Um trecho de “Aniversário”
No tempo em que festejavam o dia de meus anos / (…………) / A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos / As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa
4. Clara como o dia é essa outra pequena história:
A rapariga inglesa, uma loura tão jovem, tão boa / Que queria casar comigo … /Que pena eu não ter casado com ela / Teria sido feliz / Mas como é que sei se teria sido feliz? / ……….
O autor de tudo isso vocès já adivinharam: é Fernando Pessoa, aquele que se desdobra em diversos personagens, cada um com seu estilo literário próprio, dono de uma obra poética que ocupa 892 páginas divididas em dois volumes (Edição Nova Fronteira).

Nas ruas de Lisboa era possível topar com um apressado Fernando Pessoa
São três centenas de poemas e uma centena de textos em prosa. Isso é o que está publicado, mas como já dito no post “A janela e Maria José” existe um grande baú com 91 envelopes cheios de material inédito. Com esse volume de escritos é natural que Pessoa ocupe o espectro todo do que se chama literatura – do filosófico ao memorialista, do triste ao alegre, do romântico ao realista, do poema à prosa.
E se aqui e acolá o homenzinho da foto cede ao tom intimista de quem parece limitar-se à contemplação de seu umbigo, uma segunda leitura vai mostrar que o seu é o umbigo do mundo.
