Naqueles tempos Chico F. tinha pouco mais de setenta anos mas os suportava muito bem; era aposentado e não tinha problemas econômicos pois durante muitos anos foi diretor do setor de mineração do Ministério de Minas e Energia. Quando jovem engenheiro passou alguns anos lidando com extração de chumbo, residindo na mina e operando temperamentais equipamentos químicos na usina de beneficiamento do minério. Chama-se ‘galena’ o tal minério, nome bonito, inscrito em suas lembranças.
Mais tarde, já no Ministério seus trabalhos de consultoria em mineração (que às vezes raspavam de leve na ilegalidade das “informações privilegiadas”) lhe renderam muito dinheiro e rendem ainda, embora ele tenha diminuído as atividades. Cansou-se e desinteressou-se por concentradores iônicos, brocas, britadores, Jigs, flotação, mecânica dos solos e reações químicas – a parafernália de teorias e equipamentos da ciência e prática da mineração. Às vezes olhava seus livros técnicos enfileirados na estante, velhos amigos mas que hoje nada de interessante lhe diziam.
Restava então voltar-se para a família, composta além dele por quatro pessoas e um cachorro. Ocupavam uma grande casa, portanto cada um podia ter seu canto sem impingir nos outros. Maior ainda tornara-se a casa quando dois dos filhos casaram e voaram dali.
Carlos, Marta e Francisca são esses filhos – 35, 30 e 27 anos, respectivamente. Os dois mais velhos, os casados viviam em uma cidade próxima e era Marta quem mais visitava os pais, quase exclusivamente (tira o quase…) para pedir dinheiro. Seu marido, brilhante PhD em física exalava promessas na universidade, mas depois de dois anos como professor foi envolvido em doloroso processo de plágio – a solução da complicada equação que constituía o cerne e a originalidade de sua tese tinha sido copiada de um obscuro artigo chinês. Hoje, professor do segundo grau em uma escolinha é um frustrado dado a rampantes de raiva. De Carlos não há muito a dizer; destituído de interesses é penoso conversar com ele nas raras vezes em que aparece. Resta Francisca, que estudava Relações Internacionais – tema da moda – mas por razões imprecisas trancou o curso e vive zanzando pela casa. Conversar com ela é muito difícil pois está sempre com headphones nas orelhas, cantarolando o que está ali ouvindo. Quando fala-se com ela deve-se esperar que tire os fones, sempre com ar incomodado, e daí deve-se repetir tudo. Mas parece se sentir bem em casa: dorme a tarde inteira e de tardinha telefona, telefona. Come bastante, não é bonita nem feia, e parece que como seu irmão Carlos nunca lhe acontece nada de interessante.
E tem Alessandra E.F., a esposa de muitos anos, advogada trabalhista aposentada que sempre atuou para sindicatos patronais, e Chico F. muitas vezes se perguntou quantos pequenos bancários e operários foram derrotados em suas justas reivindicações.
Há dois anos a senhora parece ter tido uma espécie de iluminação religiosa – não que se dedicasse a rezas, rosários, missas e beijação de imagens, não, não; enveredou pela teologia ou o que supunha fosse. Logo elegeu seus canais de internet favoritos: o do Padre Bento Aristides P. e o do Padre Thales de J. De repente vozes ora macias ora trovejantes passaram a ecoar pela casa o dia inteiro. Exemplos dos temas do Padre Aristides: “O Brasil está sendo governado por Satanás?”, “Raças de víboras fantasiados de padres!”, “Guarda-te do anticristo!”,
Padre Thales é menos apocalíptico, mais douto. Convoluto e insinuante, trata de assuntos como: “A infiltração na Igreja”, “Tatuagem é pecado?”, “A heresia da comunhão na mão” (???), são títulos de suas lives, longas e maçantes mas apaixonadamente acompanhadas por Alessandra E.F.
Com headphones e pregações religiosas erguendo barreiras sônicas, há pouco espaço para Chico F. Sim, seu cachorro, o Argo, é bom ouvinte presta muita atenção ao que seu dono lhe diz, mas nessas ocasiões seu semblante é triste pois não consegue falar.
Um dia, folheando uma revista (ato raríssimo nele!) Chico F. nota um estranho anúncio – assim: Sou uma leitora, disponível para ler livros, documentos, jornal e revista, para pessoas com problemas de visão. Tenho pronúncia correta em francês, inglês, alemão e italiano. E-mail tal e tal, etc.
Dois dias depois Chico F. tocava a campainha duma casa pequena mas digna, com seu jardinzinho bem cuidado e flores na janela.

E Claudio F. achou rua e número da casa da leitora.
A leitora devia ter mais ou menos a idade de Chico F.; cabelos inteiramente brancos, reta como um soldado na guarita de um quartel, sorriso contido mas cordial, voz agradável, distinção. – O que ela vai pensar quando souber que eu vim aqui conversar e não ouvir um livro? – matutou ele, que tinha concebido sua estranha proposta logo depois de ler o anúncio. Mas a Sra. Germana, esse seu nome, não piscou. Fez algumas perguntas sobre o background desse esquisito senhor, sua carreira, sua família. Falou muito pouco de si mesma: nascera na Estônia, quase sueca então; viera ao Brasil bem pequena e trabalhou em várias editoras. Nada sobre vida pessoal.
Começaram a conversar desde a primeira sessão – Chico F. falou de seus tempos de jovem engenheiro nas minas bolivianas de Potosi, das dificuldades de relacionamento com seu chefe – talvez procurasse um pai nos chefes – comentou (acertadamente) Da. Germana. Na sessão seguinte ele contou seu encontro com o pequeno mineiro solitário que lhe deu uma pedra de minério de estanho. E que escondido do chefe levava seu cachorro nos turnos da noite. Quando deixou a Bolívia e “o chão da mina” passou a subir na hierarquia da empresa. Falou de sua transição da indústria para o governo, das reuniões importantes com ministros e tais e como – para sua surpresa – sua capacidade de argumentar e negociar crescia ano a ano. Outra vez falou dos filhos, a transformação de adoráveis crianças a pesados adultos. Disse que nenhum se parecia com ele – não que eu seja lá grande coisa, mas enfim … – quem mais o preocupava era Marta com seu desarvorado marido. Lembrou do dia do casamento; estava e não estava contente por perde-la para aquele jovem brilhante e promissor. Uma espécie de ciúme decerto. Não imaginava que a vida iria trata-los daquele modo.

Uma tranquila conversa
Se encontravam duas vezes por semana, Claudio F. e Da. Germana. Tardes de 90 minutos religiosamente pagas a cada quinzena. Em casa ele ansiava por aquelas tardes, até preparava o tema. Resolveram não falar de política nem religião, mas às vezes um acontecimento extraordinário podia acender uma conversa, a expansão da China, por exemplo, que em casa tentou um dia trazer à mesa do almoço, mas com interesse zero. Frequentes os relatos sobre sua vida em família: a obsessão religiosa da esposa, sua filha menor que estava tornando-se uma “nem nem”, sujeita a súbitos e violentos destemperos típicos de adolescentes e solteironas, a passividade de Marta e o vácuo intelectual de seu filho mais velho.
E aos poucos a conversa foi tomando viés quase psicanalítico. Retroagiu aos seus penosos tempos de escola, ao pai, desiludido com o filho por não ser o que desejava, e que não o deixava esquecer o quão medíocre o considerava. Frases com essa eram frequentes: – não, não, você não é feito para a universidade; por que não procura um emprego de vendedor, de escriturário? Ou de representante de produtos farmacêuticos? – esses até ganham um dinheirinho. O jornal tá cheio de ofertas desses empreguinhos!
Longa foi a tarde passada a rememorar sua vida profissional – a conclusão foi que valeram mais os dias e noites nas alturas de Potosi, atuando na lenta, complexa e penosa transformação da pedra bruta em metal, do que todas as grandes decisões tomadas em salas acarpetadas com vista para a Esplanada dos Ministérios.
Mas falava-se do trivial, também: – era melhor dormir virado para o lado direito ou lado esquerdo? – as bobagens da internet – o cinema americano e o brasileiro – coisas assim. Às vezes ria-se bastante. Outras vezes comunicavam-se quase sem palavras.
E assim passaram-se os anos. Imperceptivel mas inexoravelmente a corrosão do tempo obliterava as lembranças de Chico F., que se retraiam como ondas do mar em maré baixa.
E por fim quando não havia mais nada a dizer, ele resignou-se a se preparar para a morte.
