Na escola secundária passamos por diversas sessões de tortura. Matemática a mais cruel, mas português não ficava atrás. Gramática, literatura, leitura e produção de texto entrelaçavam-se com a obrigatoriedade da ler livros escolhidos pelos profs., essa a melhor fórmula para não criar um leitor. Certamente, a pior parte era o estudo da forma literária chamada “Poesia”. Começa-se por estudar os gêneros: épico, lírico, dramático, etc. Teoricamente, no fim do curso seriamos capazes de, frente a poemas, instantaneamente dizer como papagaios: “esta é uma poesia romântica, a outra é arcádica, esta é uma ode, aquela uma égloga, lá uma simbolista. Alguns professores mais sádicos queriam que interpretássemos poemas herméticos, – como ‘Sonho branco’, de Cruz e Souza, ou ‘No meio do caminho’, do Drummond, – e era como sufocar num labirinto.
Eu tive sorte – simplesmente ignorei o estudo da gramática; até hoje não sei o que é advérbio, anacoluto ou subjuntivo, mas me virava bem com ‘leitura e produção de texto’. Mas a sorte maior foi ter tido dois excelentes professores no segundo e terceiro anos do colegial. Ambos se chamavam Paulo; o do segundo ano era visto às noites, batendo papo com amigos na porta do famoso ‘Ponto Chic’ do Largo do Paisandú, bar frequentado pela boêmia paulistana dos anos 50 a 70 e onde, ao que parece, foi inventado o sanduiche Baurú. Desse Prof. Paulo, falaremos adiante.
O outro Paulo era o Paulo Vilaça que se tornou ator; foi o personagem título do excelente filme ‘O bandido da luz vermelha’, e ainda quando professor tinha ares dramáticos, e um olho para as meninas do Mackenzie. Mas era excelente professor. Uma vez levou a classe ao teatro, uma peça de Artur Pena, dramaturgo romântico. Era ‘Quem casa quer casa’, e irônico ele comentou que “aquele era o tipo de argumento que a diretoria do colégio permitia”, insinuando que por ele nos levaria a ver ‘Esperando Godot’ ou ‘A visita da velha senhora’, o Teatro do Absurdo de Beckett, Durrenmath, etc.

Esperando Godot. Quando há substância nem precisa-se de cenário
No segundo ano estudávamos literatura portuguesa, e no terceiro a brasileira. O Paulo do Ponto Chic pedia memorização de poesias, uma tortura exigida pelo programa da disciplina.
A muitos de nós estava claro que o formato ‘poema’ era rígido demais. Achávamos que a estruturação por rima e por métrica acabava por dificultar o que o autor quer dizer. E existe outro fator limitante, talvez mais forte. Segundo o poeta e crítico Allen Grossmann funciona assim: suponhamos que você queira escrever um poema seguindo algum transcendente impulso. Mas ao realizar este impulso, o salto é prejudicado pela inadequação, pela pobreza da linguagem; Grossmann aponta o conflito entre o desejo do poeta em construir um mundo alternativo e a resistência exercida pelo material que compõe o mundo – que é a linguagem.
O Professor Paulo sabia disso e nos explicou o que é poema em prosa, simplesmente um poema-texto sem rima ou métrica, corrido. Daí nos introduziu a Fernando Pessoa (Lisboa, 1888 – 1935), seu poeta preferido, autor de milhares de poemas, escritos “como se deve” com rima e métrica, mas também de poemas em prosa, pois Pessoa disse não ver diferença entre poesia e prosa: ambas expressam uma ideia. O professor também nos explicou a questão dos ‘heterônimos’, uma particularidade de Pessoa, que se desdobrava em múltiplas personalidades fictícias, As mais conhecidas são: Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis. Essas sombras de Fernando Pessoa tem vida e estilo literário próprios – mas uma parte de cada um deles se confunde com o dono da sombra.

Fernando em seu bar preferido – o café restaurante Martinho da Arcada
Para mostrar um poema-prosa escolhi a “Carta da corcunda para o serralheiro” também conhecido como “Adeus Senhor Antônio”. Independentemente da forma, poema ou prosa, mesmo em resumo como feito aqui, uma ou outra nos transporta diretamente ao mundo ao qual o autor nos quer levar, aqui o mundo de Maria José, circunscrito pela sua deficiência física e sua sensação de inutilidade.
Aqui o resumo O texto é estruturado em forma de carta, escrita por uma moça chamada Maria José. Ela é corcunda e passa seus dias à janela do primeiro andar de uma casa amarela. A carta é dirigida a um Senhor Antônio que ela ama e acompanha com os olhos quando passa na rua. Sabe que ele tem uma amante – loura, alta e bonita – tem inveja dela mas não tem ciúmes, pois nem sequer pode descer à rua para falar com o Senhor Antônio! É consciente de que ninguém pode gostar de uma moça corcunda, mas sente que tem o direito de gostar dos outros, mesmo que não gostem dela.

A famosa arca de Fernando Pessoa, com milhares de documentos que ele deixou de publicar
Maria José nasceu assim e sempre riram dela. Tem dezenove anos, é tuberculosa e se admira de ter chegado até essa idade, doente e corcunda. Reconhece que escreve cartas demais ao Senhor Antônio, mesmo sabendo que ele nunca vai lê-las, pois não as vai enviar. Ela conta que uma vez, na rua, se deu uma briga entre gato e cachorro, justamente enquanto o Senhor Antônio estava passando. Ele, olhando por acaso na direção da janela a viu rindo e ele riu também, mas como se fosse para ela. Essa foi a única vez que a Maria José pareceu, por assim dizer, estar a sós com o Senhor Antônio. Ela passa o tempo a esperar que algo aconteça na rua enquanto ele estiver ali passando, para que olhasse novamente para ela. Mas não consegue nada que quer, e lamenta ter necessidade de subir num estrado para chegar à altura do peitoril da janela. Também escreve que está sempre à janela por que tem uma espécie de reumatismo nas pernas e não pode se mexer – sente que em casa é um estorvo e que é apenas tolerada. Passa o dia vendo revistas de moda, e quando perguntam isso e aquilo do que está lendo não sabe responder – não presta atenção no que lê por que não quer que lhe entrem na cabeça coisas que não poderá ter nunca.
Às vezes pensa em se atirar da janela, mas esta é tão baixa que não morreria. Só daria trabalho para os outros, caída na rua, a corcunda a sair da blusa e as pessoas teriam nojo ou pena ou pior, ririam dela.
Na carta se dirige ao Senhor Antônio dizendo que ele não sabe o que é ser ninguém – que os outros tem vidas interessantes e ela é um trapo, vivendo no parapeito de uma janela. Também escreve – mas sem esperança alguma – que gostaria que ele, de vez em quando lhe desse um adeus da rua, mesmo por acaso, sem pensar.
Uma vez ouviu o mecânico da oficina dizer a seu pai que todos devem produzir algo, senão não tem direito à vida – e pensou “o que estou fazendo no mundo, eu que não posso fazer nada!”
No final da carta ela dá adeus ao Senhor Antônio e diz que tem apenas dias de vida. Lhe deseja todas as felicidades e repete que o ama com toda a alma, e que está tentando não chorar.
É óbvio que este texto não diz respeito a uma Maria José qualquer. É uma metáfora do autor, que escolheu aquele nome para mais um heterônimo dentre os sessenta e tantos que são sua sombra. È único heterônimo feminino, e produziu apenas esse texto.
