Um pequeno conto de Natal

Essa é a estrofezinha que a cada Natal um rapaz de uns 18 anos, o centro de nossa história, recita para escandalizar os parentes. Estamos em São Paulo, numa bela casa onde uma família estendida se reuniu para o Natal, ou mais precisamente: para a festa de Natal – é diferente.  Na sala, os quatro sogros dos donos da casa se refastelavam nos sofás e poltronas; outros familiares circulavam por aí: os donos da casa, ambos juvenis mas na meia-idade, um par de velhas tias (aqui as relações de parentesco fazem sempre referência ao rapaz) e dois tios-avôs, ambos irmãos da avó materna: um, que nessas ocasiões festivas é retirado de uma casa de repouso, e o outro, ainda semi-independente vive num apartamentinho sala e quarto do centro da cidade esperando eternamente visitas de seus filhos, que moram em Santos, “mas que sempre me enviam cartões de Natal e aniversário” – faz questão de desculpa-los a quem deles perguntava. Enfim, um monte de gente, mas a casa era grande.

Sempre presente nas festas de Natal dessa família um senhor de uns cinquenta anos, bem apessoado, que se visto de longe podia parecer próspero, com seu blazer azul marinho de botões dourados, mas que de perto mostrava-se (o blazer) gasto e algo curto nas mangas. Tratava-se de um amigo do dono da casa, um colega de Faculdade, que tal como os tios-avôs era sempre convidado no Natal, mas por outras razões. No seu tempo ele estava entre os primeiros e mais brilhantes alunos. Também era um dos poucos que tinham carro, a inveja da turma da Faculdade.

Na vida, porém, os dois amigos tomaram rumos que os levaram a encontrar-se em estações da vida bem diferentes. Um observador atento perceberia que a presença do amigo ali servia para que o dono da casa lhe exibisse seu sucesso: o casarão nos jardins, a elegante esposa, os filhos.

Todo natal era a mesma discussão: árvore ou não árvore. A mãe era pela árvore e sempre acabava vencendo. O dono da casa fingia indiferença, mas odiava aquele ritual, aquelas bolas estúpidas, lanterninhas e a ridícula neve de algodão. Nisso era seguido pela sua filha, que todo ano no dia do drama da árvore refugiava-se no seu quarto, ato aliás muito frequente mesmo em dias normais. Anos atrás, uma das avós, a mãe da dona da casa, timidamente tentou sugerir a montagem de um presépio – “está mais de acordo com a data, afinal uma árvore não tem nada a ver com o Jesus menino” e acrescentou “quando você era menina, lembra como gostava do presépio que eu montava?”. Sua filha a olhou friamente sem nada dizer, e a coisa terminou ali.

O presépio simples que a velha senhora antigamente montava

Os presentes – que eram muitos – começaram a ser distribuídos com grandes demonstrações de falsa surpresa e alegria exagerada: ooh, aaah,, que llindoo, não deviaaa, etc. e tal. Até uns três ou quatro natais atrás tentou-se o amigo secreto. Mas os mais velhos não entendiam o mecanismo da coisa e os dois mais jovens passaram a considerar aquilo infantil e irritante.

Finalmente a distribuição de presentes terminou, com quase todos matutando o que fazer com aquelas coisas e cuidando para que sua decepção não transparecesse. Os avós se esqueciam do que tinham dado e repetiam presentes de natais passados – a mocinha quase não conseguiu esconder sua indiferença ao presente ingênuo de sua avó, de uma delas, que a outra formava o casal que nunca trazia presentes e – quando em casa – criticava os que tinha recebido e desfazia dos presentes dos outros. O tio-avô da casa de repouso não participou da festa dos presentes pois apesar do barulho adormeceu, e com sua cadeira de rodas foi empurrado para uma saleta em desuso – “para não incomodá-lo disse a dona da casa” – e os que perceberam o gesto louvaram sua delicadeza.  

Na cozinha reinava uma atividade febril – eram os últimos toques da ceia. A empregada fixa do casal, que também tinha sua festinha de Natal esperando-a em casa, fora aliciada com pagamento duplo e estava dando os últimos toques no prato forte: um gigantesco peru. Tinham arranjado uma auxiliar, só para aquele dia, uma mocinha baixa, que detinha-se toda hora com olhos arregalados a mirar os pratos com desenhos coloridos e bordas douradas, os talheres de prata e os reluzentes copos, de água, de vinho branco, vinho tinto e champagne, coisas que ela nunca tinha visto na vida e nem imaginava que existissem.  No forno borbulhava o bacalhau, um bacalhau importado da melhor qualidade, que há poucos dias nadava contente nas frias águas de Portugal. O resto estava pronto: a mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na louça, os copos de cristal finalmente nas posições como se deve. O aparador com muitas coisas – doces, frutas, o resto na sombra, debaixo de um pano arabescado em vermelho e ouro.

A grande mesa foi encostada na parede para que cada um se servisse; esse arranjo tinha provocado uma certa discussão entre os donos da casa; ele queria todos sentados à mesa, que naturalmente ficaria no centro da sala de jantar, mas foi voto vencido. Como sempre aliás; mas tudo bem – ele tinha outras coisa pela cabeça no momento que era achar um canto tranquilo e seguro para dar um certo telefonema de feliz Natal

Na mesa ainda um lugar vago para o peru e o bacalhau à portuguesa Em volta acomodava-se o arroz de Natal enriquecido com passas, e a farofa com amêndoas, frutas secas e bacon bem torrado que acompanharia o peru. O salpicão foi trazido por uma das tias, que ficou tão contente pelos elogios que quase chorou de alegria. Numa mesinha ao lado a entrada: tábua de frios, compota de berinjela e canapés de caviar. Em outra mesinha tronejavam três grandes panetones, o pavê e uma travessa de trufas. Vinhos, champagne e licores formavam o background; doces e chocolates de todos os feitios espalhavam-se por entre pratos e garrafas.

A ceia de natal

O peru e o bacalhau foram finalmente colocados na grande mesa – de imediato a empregada livrou-se do avental, desejou feliz Natal aos patrões, rebocou a auxiliar (que se esclareceu depois ser sua sobrinha) e ambas correram para não perder o último ônibus da noite.

E finalmente as pessoas iniciaram a comer com as demonstrações de alegria e exagerado apreço pela ceia, que todo ano julgavam dever fazer. Deve ser reconhecido que o apreço não era exagerado, mesmo para aqueles sempre prontos a criticar. Alguns, de si para si até lamentaram não poder exercer o prazer da maledicência.

Enquanto a ceia prosseguia, a dona da casa, amante da limpeza e ordem que era, preocupou-se com a confusão de presentes e respectivas embalagens vazias espalhadas na sala de estar: “Filho, por favor, ajude a colocar essas caixas na rua”, e depois do décimo pedido, sem pressa o garoto começou a juntar as caixas.

Uma vez fora da casa surpreendeu-se com o silêncio e a escuridão, encadeado que estava com as luzes da casa, feericamente acesas. No caminho entre a porta de casa e o portão que dava para a rua sentiu a umidade da noite penetrar até os ossos. Tinha acabado de garoar.

Na rua, chuva, frio e silêncio

Começou a empilhar as caixas na calçada, mas lá longe, na esquina pareceu-lhe ver pessoas, ouvir vozes. Trouxe mais caixas e nesse espaço de tempo as tais pessoas tinham se aproximado. Eram um homem, uma mulher e uma menina de uns cinco anos. Empurravam uma carrocinha, uma tábua sobre duas rodas de bicicleta já carregada com caixas vazias recolhidas das casas da rua. Chegaram, murmuraram um ‘boa noite’ e começaram a recolher o material da casa do rapaz. O portão estava aberto, o gato da casa tinha se aproximado curioso e para vê-lo a menininha meio que entrou no jardim: “Ah – um gato!”

– “Que isso filha, entrando na casa dos outros? – desculpe senhor… crianças, né?”.

– “Ah, não faz mal, deixa” – e os três logo estavam virando a esquina como o carrinho quase cheio de caixas. Já eram sombras indistintas quando subitamente a mente do rapaz se abriu para o que tinha visto: “essas pessoas – essas pessoas são o presépio que faltou na minha casa!”.

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